‘For Life’ e ‘Goliath’: a justiça e a falta dela em abordagens transformadoras
Personagens complexos e ardilosos, éticos ou não, criam diferencial em meio à fartura no gênero Blogs e Colunas | Levando a Série 20/08/2021 20h55 - Atualizado em 20/08/2021 20h55Aprecio séries que mergulham nas lides jurídicas, mas há tempos a maioria me dá aquela impressão de “já vi isso antes”. Uma exceção é a ótima Drop Dead Diva, cujo enredo se destaca na medida em que a advogada protagonista é a encarnação de uma jovem modelo que, por equívoco celestial, morre antes da hora.
As duas séries recomendadas hoje também destoam de fórmulas consagradas, ao desnudar o sistema judicial, de maneiras diversas, mas com semelhante crueza. Em comum, ambas expõem os meandros pelos quais pessoas inocentes podem ver a própria vida arrasada, numa distância abissal do que, em tese, significa a palavra “justiça”. A primeira é For Life (Para a vida toda), disponível na Netflix. O título da segunda – Goliath –, original Amazon Prime Video, faz alusão ao Golias bíblico, uma metáfora interessante já que, no caso, o protagonista advogado inverte os papéis: ele se torna um gigante na luta contra um escritório de direito multinacional e corporações de grandes influência e poder econômico.Em For Life, a ambição de um promotor desonesto custa a liberdade de Aaron Wallace, inspirado livremente em situação idêntica na vida real, cuja vítima foi Isaac Wright Jr., sentenciado injustamente à prisão perpétua. Como o personagem fictício, ele passou a atuar como representante legal dos detentos – a diferença é que, na ficção, o personagem se formou em Direito ainda na cadeia; enquanto o inocente da realidade só o fez depois de liberto.
Em 1989, em Nova Jersey, Isaac Wright Jr. foi acusado de liderar uma quadrilha de tráfico de cocaína, sem qualquer antecedente criminal. Após sua condenação em 1991, enviado para a prisão estadual de segurança máxima de New Jersey, começou a trabalhar como representante paralegal de outros detentos, enquanto ele próprio tinha chance de obter liberdade condicional somente após 30 anos de cumprimento da pena. “O ato de representar esses outros prisioneiros que também foram injustiçados foi uma parte de mim lutando contra eles [em alusão ao sistema judicial] e trazendo-os de volta pelo que fizeram comigo”, disse Wright à revista Esquire.
Em 1996, o promotor corrupto que o colocou na cadeia injustamente viria a ser enfim condenado por dezenas de crimes, incluindo peculato e abuso de poder. Em prisão domiciliar, fugiu e foi encontrado morto no estado de Nevada, em um quarto de motel barato. Suicidou-se. Tal ocorrência lançou novas luzes sobre o caso de Wright e despertou interesse da imprensa. A condução antiética do processo legal pelo promotor suicida ensejou que um juiz ordenasse novo julgamento e, enquanto esperava, depois de pagar fiança, Wright foi libertado pela primeira vez em mais de sete anos.
Como se vê, justifica-se plenamente que os acontecimentos verdadeiros tenham inspirado uma série, ainda que o enredo desta não seja fidedigno, razão pela qual posso antecipar o desfecho do inferno vivido por Isaac Wright Jr., sem dar spoiler quanto ao personagem fictício, Aaron Wallace. For Life mantém os principais elementos do evento que a originou: a corrupção e as possíveis falhas no sistema judicial, evidentes lá nos EUA, assim como cá. Mais importante, porém, mostra os custos existenciais de sofrer uma circunstância dessas, sob a perspectiva de um inocente que se vê sentenciado à prisão perpétua. Como o Isaac de verdade, Aaron nunca esmorece. A interpretação do personagem a cargo do ator Nicholas Pinnock enobrece a série, por sua capacidade de mostrar-se distinto e revoltado ao mesmo tempo. E incansável na missão de provar sua inocência. Talvez achando que só essa narrativa não seria capaz de ancorar For Life, os produtores – entre os quais se inclui Isaac Wright Jr. – resolveram apimentar as coisas. Parte da história expõe o cabo-de-guerra entre a diretora do presídio onde Aaron está detido e o sistema carcerário acostumado a operar na base da humilhação e da violência. A diretora - Safiya Masry – não só acredita em recuperação dos internos como, para piorar sua situação entre os membros conservadores do conselho ao qual se reporta, é casada com outra mulher. E para mostrar que tudo pode ficar pior, sua parceira é a promotora Anya Harrison (Mary Stuart Masterson, num papel pequeno para sua envergadura), que concorre ao cargo de procuradora geral de Nova York, logo com o promotor velhaco e antiético que jogou o inocente Aaron Wallace na prisão perpétua.Tão encantador quanto o detento inocente é o anjo da guarda a lhe estender a mão: o ex-senador Henry Roswell (Timothy Busfield), que não só o ajuda a se formar em Direito atrás das grades, como também a prestar o equivalente norte-americano ao exame da OAB. Henry abriu mão do cargo público por problemas com alcoolismo, fato que, em seu caso, o tornou adoravelmente humano, empático com o sofrimento alheio.
For Life está no “bombando” da Netflix desde sua estreia recente na plataforma. A audiência da série fez com que, nesta quinta-feira (19), a primeira temporada chegasse também à Globoplay. A história é ótima – no nível da real – e achei muito válido que seja contada sob a perspectiva da vítima. Talvez isso ajude as pessoas a entenderem o estrago que um erro judicial pode causar, pior ainda se deliberado, fruto de motivações escusas, a unirem perversidade e má fé.
A batalha contra maçãs podres na esfera jurídica é também o alicerce de Goliath, original Amazon. De cara, a série me interessou porque o protagonista, o advogado Billy McBride (o gigante do título), ganha vida na pele de Billy Bob Thornton. O papel é perfeito para o ator, cuja experiência garante conferir a seu personagem todas as nuances que o tornam ímpar, um anti-herói. Sua vida errática, que inclui morar em um motel próximo a seu bar favorito, onde bebe todas, e dirigir um Mustang que já viu melhores dias, a princípio não favorece que se bote fé no trabalho dele. Ledo engano.
Na primeira temporada de Goliath, seu oponente é o ex-sócio no escritório de Direito que ambos fundaram, o todo-poderoso Donald Cooperman, numa interpretação magistral de outro talento inquestionável, o ator William Hurt. Cheio de culpa por uma defesa que resultou em tragédia, McBride se entrega à bebida e acaba defenestrado da própria firma por comportamentos inadequados. No caminho, perde também a esposa, Michelle (Maria Bello), advogada que prossegue trabalhando para Cooperman, portanto em tese na agora trincheira inimiga. Na prática, porém, o ex-casal mantém uma relação razoavelmente cordial em prol da filha adolescente, Denise (Diana Hopper), que não raro parece mais adulta do que o pai. O embate de McBride com o ex-sócio Cooperman – sujeito ambicioso, invejoso e mal resolvido – surge por intermédio de uma mulher cuja irmã ficou viúva. O marido dela, cientista da área de tecnologia, morreu na explosão de um barco pertencente à empresa onde ele trabalhava, uma megafabricante de armas. A ocorrência foi classificada como suicídio, hipótese refutada pelo filho adolescente do cientista e por essa tia que, contrariando a vontade da irmã, expõe o caso à advogada Patty Solis-Papagian (Nina Arianda). Ocorre que a tal corporação, de alcance mundial e agora sob suspeita, é cliente da firma liderada por Donald Cooperman, a essa altura já atuando em diversos países. Sabedora da rivalidade entre o poderoso advogado e o ex-sócio, Patty vai atrás de McBride e estabelece com ele parceria a lhe soar muito proveitosa.Essa convicção, porém, é frequentemente abalada na medida em que Patty se exaspera pela impossibilidade de controlar o parceiro de trabalho. Um exemplo que abusou da fantasia reside na contratação feita por ele de uma amiga prostituta – Brittany Gold (Tania Reymond) – como assistente jurídica.
A defesa da potência fabricante de armas cabe à advogada Callie Senate, mais um ótimo papel da atriz Molly Parker. Mas lembram que o chefão da firma, Donald Cooperman, é um cara abjeto? Sem dar spoiler, o fato é que se compraz em dificultar o trabalho delegado por ele mesmo à ambiciosa Callie, focando uma estratégia de torpeza condizente com seu perfil. Nesse panorama, ainda que Billy McBride esteja longe de referência ética, fica fácil torcer pelo aparente Davi, o lado mais fraco que acaba por perverter essa lógica, se mostrando um Golias em sua obstinação benéfica, ao contrário do bíblico.As temporadas abordam questões jurídicas diversas, o que, a meu ver, só aumenta o interesse pela série. A quarta e última chega a Amazon Prime Video em setembro próximo, com lançamento em mais de 240 países. Aguardo cheia de expectativa.
Por fim, deixo à reflexão frase atribuída ao filósofo grego Protágoras: “Das coisas belas, umas são belas por natureza e outras por lei, mas as coisas justas não são justas por causa da natureza, os homens estão continuamente disputando pela justiça e a alteram também continuamente”.
Para maratonar:
For Life – uma temporada com 13 episódios, disponível na Netflix, segunda sem previsão de chegar ao Brasil;
Goliath – três temporadas, total de 24 episódios, quarta estreia em setembro na Amazon Prime Video.
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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