Reconheça sua escada!
Blogs e Colunas | Amanda Neuman 27/09/2020 17h26Minha filha ainda vai completar 1 ano. É minha primeira filha e, pra mim, a coisa mais preciosa desse mundo. Helena é esperta e saudável, tem um berço quentinho, roupinhas cheirosas, come frutas no lanche e faz refeições coloridas. Helena é privilegiada. Eu também fui privilegiada. Nunca fui rica. Bem longe disso, na verdade. Mas eu terminei o ensino médio e entrei direto na faculdade de Jornalismo, com apenas 17 anos e pais que pagavam as mensalidades (muitas vezes, aos trancos e barrancos, mas pagavam).
Talvez pra você essas coisas todas soem simples demais porque você teve (ou tem) muito além disso. Talvez soem grandiosas porque você não tem (ou não teve) esse tipo de possibilidade. Você pode estar em qualquer um desses dois grupos - ou muito além, ou muito aquém deles - e, ainda assim, estar aqui. O nome disso é desigualdade.
A desigualdade começou a me incomodar muito cedo. Eu tinha uns 11 anos quando minha mãe me levava pra brincar com as crianças de um lar que acolhia menores enquanto a justiça decidia com quem eles ficariam. Nem todos estavam ali para adoção, alguns só estavam passando um tempo. Meus pais conheciam os diretores da instituição, então eu sempre ia lá pra brincar. Um dia entrei no quarto das meninas. Era limpo e organizado, com várias camas e uma única penteadeira com espelho. Ali em cima tinha uma caixa com algumas maquiagens, perguntei à amiga que brincava comigo de quem eram. “É da gente, todo mundo divide”, respondeu com naturalidade. Fiquei com aquilo na cabeça por dias (por anos, eu acho, porque nunca esqueci) e pensei como podia ser normal dividir maquiagens com outras meninas se eu e minha irmã brigávamos pra não dividir um batom sequer. O nome disso era desigualdade.
Muitos anos depois, eu e meu marido, que na época era apenas namorado, criamos junto com outros jovens um projeto social chamado Trupe Cosquinhas. A gente amava (e ama!) crianças, então com a Trupe começamos a ir em busca de crianças em situações de vulnerabilidade para brincar, cantar e fazer teatro com mensagens de esperança e alegria. Com a Trupe chegamos a alcançar 2 mil crianças num único mês por anos seguidos e, ainda que parecesse simples demais, aquelas horinhas no calor da tarde com pipoca doce e dança do canguru mudaram (e têm mudado) as nossas vidas. A Trupe nos fez ver de perto realidades diferentes da nossa: crianças com câncer, famílias do sertão com seis filhos e nunca um brinquedo novo, filhos de detentas que viam suas mães uma vez por mês no presídio feminino, entre outras situações que, num mundo igual, não existiriam.
Em cada ida aos hospitais, ao sertão, ao presídio, a desigualdade nos incomodava mais e, por isso, decidimos que quando tivéssemos filhos, ensinaríamos a eles que não dá pra esperar alguém chegar pra mudar magicamente o mundo. A gente precisa fazer. É a gente que tem que mudar.
Nossa filha ainda é pequena demais pra entender certas coisas, mas se tem algo que temos pra ensiná-la é: reconhecer nossos privilégios nos faz olhar o outro com amor e empatia. Não é sobre solidariedade ou sobre fazer caridade. Não é mesmo! Reconhecer que temos mais do que precisamos, que somos mais abençoados do que merecemos e que o que pra gente é pouco pode fazer diferença na vida de outra pessoa é o que não nos permite ver a desigualdade e deixar por isso mesmo. Mas não dá pra viver a utopia de que a igualdade resolve tudo quando a equidade é igualmente necessária. Nós nunca estaremos no mesmo lugar se não viemos do mesmo lugar.
Pra uns, o caminho é longo e os degraus são muitos. Pra outros, a subida é de escada rolante. E ainda há aqueles que sobem de elevador e ar condicionado. Saber em que tipo de escada estamos é o que nos ajudar a tomar posição e fazer alguma coisa. É verdade que Helena ainda é pequenininha demais pra entender isso, mas um dia ela vai saber que o mundo que quero pra ela – e que ela vai desejar para si – não será dado por ninguém. Se ela quer viver em um mundo melhor, mais igual e com oportunidades justas, é ela que vai ter que fazer ele acontecer.
Jornalista (UNIT) há 10 anos, mestra em Comunicação (UFS), doutoranda em Sociologia (UFS), pesquisadora na área de redes sociais e influenciadores digitais, e mentora de marketing para empreendedores e Influenciadores. Na internet, como mulher plus size que descobriu o amor próprio e auto estima além dos padrões, compartilha sua vida e vivências com outras mulheres e as encoraja a se amarem como são.
E-mail: amandaneuman.an@gmail.com
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