Há 120 anos nascia Nise da Silveira, a "psiquiatra rebelde" | F5 News - Sergipe Atualizado

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Há 120 anos nascia Nise da Silveira, a "psiquiatra rebelde"
Médica inspirou o movimento da reforma psiquiátrica no Brasil
Brasil e Mundo | Por Agência Brasil 15/02/2025 11h15


"Ninguém hoje, no Brasil, que se interesse pelas questões ligadas à expressão artística ou à psiquiatria, ou a ambas, pode ignorar a contribuição de Nise da Silveira. Contribuição essa que é marcada, de um lado, pela coragem intelectual de romper com o estabelecido e, de outro, pela identificação profunda com o sofrimento do seu semelhante."

As palavras escritas por Ferreira Gullar, em 1996, já eram válidas 50 anos antes e permanecem verdadeiras até hoje. Assim ele começa seu livro Nise da Silveira - Uma Psiquiatra Rebelde, biografia da médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico, nascida em Maceió, no dia 15 de fevereiro de 1905, há exatos 120 anos.

A "coragem" mencionada por Gullar se revelou logo cedo, quando ela decidiu cursar medicina em 1921, apesar de se sentir mal ao ver sangue e de ser a única mulher entre mais de 150 homens na sua turma na Faculdade de Medicina da Bahia. Nise tinha apenas 15 anos. Um ano depois de concluir o curso, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se especializou em neurologia e psiquiatria e passou a trabalhar na unidade pública de saúde mental então denominada Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental. Mas, assim como muitos intelectuais, ela foi presa pelo governo Vargas acusada de envolvimento com a causa comunista e foi afastada do serviço público até 1944.

A parte mais conhecida de sua trajetória começa neste mesmo ano, quando ela consegue ser reintegrada aos quadros públicos e assume um posto no Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, na zona norte do Rio de Janeiro. Os quase 2 anos que Nise passou no cárcere aprofundaram nela a "mania de liberdade", termo que ela iria repetir muitas vezes posteriormente, e também a importância de não se deixar consumir pelo vazio. 

E o Pedro II guardava muitas semelhanças com a prisão. Eram mais de 1 mil pacientes, de ambos os sexos e de todas as idades. A maioria tinha diagnóstico de esquizofrenia crônica e, para muitos, o hospital tinha uma porta de entrada, mas não de saída.

Os pacientes viviam enclausurados, em condições insalubres, sem realizar nenhuma atividade criativa e eram submetidos a tratamentos reconhecidos atualmente como violentos, mas completamente aceitos e disseminados entre os psiquiatras de todo mundo naquela época, como a lobotomia, o eletrochoque e a terapia de choque por insulina. Mas Nise não era como todo mundo. Bastou assistir a uma sessão de eletrochoque e ver os efeitos danosos da terapia com insulina, para que a médica se recusasse a aplicar esses "tratamentos", o que lhe rendeu o título de "rebelde" que ela fez questão de nunca mais abandonar.

A direção do hospital, então, relegou à Nise uma atividade considerada de segunda classe, a terapia ocupacional. Em entrevista a Ferreira Gullar, publicada no mesmo livro, Nise conta que a ocupação dos pacientes era "varrer, limpar os vasos sanitários, servir os outros doentes". A médica então criou uma sala de costura e depois um ateliê de pintura. 

"A inovação consistiu exatamente em abrir para eles o caminho da expressão, da criatividade, da emoção de lidar com os diferentes materiais de trabalho", explicou a médica ao escritor.

Rebeldia

A partir daí, a revolução começou, inclusive com os nomes. Nise se recusava a chamar os internos de pacientes e preferia o termo "clientes". Durante as oficinas, os tratava com afeto, e não com indiferença. O setor de terapia ocupacional chegou a ter 17 atividades diferentes, e ela também utilizava os pátios, onde os “clientes” eram colocados para tomar sol, em um local para festas e outras atividades coletivas. E o resultado dessas atividades era cuidadosamente guardado ou registrado pela médica, como material de pesquisa.

Poucas pessoas conhecem esse material tão bem quanto Luiz Carlos Mello. O atual diretor do Museu de Imagens do Inconsciente - fundado por Nise - trabalhou com a médica por 26 anos, contribuindo com suas pesquisas e com a organização do seu gigantesco acervo, reconhecido como Memória do Mundo pela Unesco. Ele conheceu Nise em 1974, quando entrou no Pedro II como estagiário, "muito jovem e muito tímido" e começou a participar do seu grupo de pesquisas. Mas só se tornou seu colaborador em 1975, ano em que a médica foi aposentada compulsoriamente por completar 70 anos.

"Quando eu cheguei, o acervo já tinha quase 200 mil obras. Foi a fase reflexiva dela, de pegar o saber, os conhecimentos dela e transformar em livros, cursos, documentários. Ela tinha um rigor de trabalho impressionante e um conhecimento universal extraordinário, então gerou muitos frutos", lembra Luiz Mello.

Segundo o médico, os resultados da terapia ocupacional orientada por Nise foram rápidos e visíveis, mas ainda assim ela enfrentou resistência durante toda sua carreira: "Ela criava um ambiente sem grades. Os clientes eram chamados pelo nome, uma das bases do trabalho dela era a relação afetiva. E em qualquer doença, não só a doença mental, com um ambiente favorável, o prognóstico é melhor".

As obras produzidas pelos clientes revelavam emoções que eles não conseguiam organizar e exprimir em palavras, e com o passar do tempo, comprovavam também sua melhora. Em outros casos, atestavam o malefício das terapias tradicionais. Um dos exemplos mais contundentes é o de Lúcio Noeman, que esculpia guerreiros em gesso com muita técnica e precisão, mas foi submetido a uma lobotomia, e depois disso só conseguia produzir figuras disformes.

"Segundo a psiquiatria da época, a principal característica da loucura é a perda da unidade do indivíduo. Mas no atelier eram feitas imagens de mandalas em círculos, o que era uma contradição na própria doença, porque o círculo, por excelência, é o símbolo da unidade. Foi aí que ela escreveu uma carta ao Jung [psiquiatra e psicoterapeuta suíço], com fotografias, perguntando se realmente eram mandalas e por que elas apareciam em tão grande quantidade na produção deles. Menos de um mês depois, ele respondeu dizendo que realmente eram mandalas e que corresponderiam às forças auto-curativas da psiquê. Então, se a pessoa vive um estado de confusão mental, de dissociação, existem forças no inconsciente que contrabalanceiam isso, que buscam a unidade, a reestruturação", destaca Luiz Carlos Mello.

Em uma carta seguinte, Jung escreveu: "O signatário desta carta convida a senhora doutora Nise da Silveira a se juntar ao semestre de verão de 1957 do Instituto C. G. Jung - Zurique", o que deu início a uma profícua relação de Nise com os pesquisadores do instituto - ela chegou a ser analisada por uma de suas discípulas, a psicoterapeuta Marie-Louise von Franz - e com o próprio Jung. A partir daí, Nise se tornou grande disseminadora das teorias de Jung no Brasil, e seus trabalhos também ganharam maior dimensão internacional.

Nise também foi pioneira na terapia com animais, algo que hoje é largamente utilizado, com evidências científicas da sua efetividade. De acordo com Luiz Mello, essa ideia partiu da observação atenta dos clientes. 

"Nise sempre gostou de bicho. E um doente chegou para ela com um cachorro machucado e perguntou se poderia cuidar desse cachorro. A doutora Nise deu condições e começou a observar que, à medida que o bicho melhorava, o paciente também melhorava", recorda Luiz Mello.

Inconformada com a grande reincidência de pacientes internados - que chegava a 70% -, Nise também se lançou a um empreendimento que Luiz Mello considera uma antecipação, em mais de 30 anos, dos centros de Atenção Psicossocial, que hoje são as grandes âncoras do serviço público de saúde mental do Brasil. A Casa das Palmeiras, fundada pela médica em 1956, atendia pessoas com transtornos mentais de forma gratuita, sem internação, aplicando a reabilitação ocupacional que ela criou. O local permanece aberto até hoje, mas depois de enfrentar dificuldades financeiras, passou a cobrar mensalidade dos pacientes.

Legado

Por todas essas rebeldias, Nise é tida como uma grande inspiração do movimento de reforma psiquiátrica, que ganhou força no Brasil nos anos 80. Mas um dos principais expoentes dessa luta, o pesquisador sênior da Fundação Oswaldo Cruz Paulo Amarante, diz que a médica desconfiava da proposta de acabar com os manicômios.

"Assim como muitas pessoas importantes na história da psiquiatria, ela achava que seria possível existir uma instituição em regime controlado, de uma maneira humanizada. E ela tinha medo: 'Você vai dar alta pra pessoa e ela vai pra onde? Vai comer aonde? Ela vai ser vítima de violência'", explica Amarante.

Amarante passou a ter contato frequente com Nise ao ser convidado para planejar a extinção justamente do Hospital Psiquiátrico Pedro II, e fez questão de consultar a médica, iniciando uma verdadeira jornada para convencê-la a apoiar o movimento antimanicomial, o que ficou mais fácil depois que alguns discípulos de Nise embarcaram no projeto.

"A gente trabalhava não para melhorar o hospício, mas para acabar com aquilo, superar aquele modelo. E ela tinha uma experiência pessoal com a Casa das Palmeiras, então a gente usava isso [para convencê-la]: 'Olha, Nise, a gente quer fazer várias Casas das Palmeiras, locais onde as pessoas passam o dia, fazem atividades, não é obrigatório, não têm que dormir, não ficam presa, entendeu?'”

Ele também levou diversos estudiosos favoráveis à causa para conhecerem Nise, até que a desconfiança da médica se desfez. "Foi uma pena ela não poder assistir aquela instituição deixar de ser um hospital psiquiátrico", lamenta Amarante.

Nos anos 2000, o hospital foi rebatizado e passou a se chamar Instituto Municipal Nise da Silveira, diminuindo sua capacidade ao longo dos anos, até a realocação dos últimos internos em residências terapêuticas, em outubro de 2021. Desde então, a sua enorme área de 79 mil metros quadrados funciona como parque, com atividades esportivas, artísticas, culturais e de lazer e abriga ainda o Museu de Imagens do Inconsciente. O instituto também mantém atividades de reabilitação psicossocial e de promoção da saúde mental.

Apesar da batalha, Amarante reafirma que Nise é uma grande inspiração. "No Brasil, ela foi a primeira pessoa a recusar-se a fazer uma psiquiatria baseada na violência. E a Nise tinha essa formação filosófica, humanista, e era uma pessoa comprometida com os direitos humanos, com a liberdade, e os direitos das pessoas".

E o movimento antimanicomial acabou reforçando ideias que Nise já defendia. "Nós temos que mudar as relações que a sociedade tem com essas pessoas, por isso a gente faz um grande investimento em atividades de arte e cultura. E a gente conseguiu questionar a teoria da irreversibilidade da doença mental. A maior parte daquelas pessoas que estavam nos manicômios, que se dizia que eram crônicas por causa da doença, nós mostramos que a institucionalização, a falta de direito, de protagonismo, de possibilidade de exercer a cidadania, é que criava essa cronicidade"

Nise da Silveira continuou trabalhando durante toda a sua vida e morreu em 30 de outubro de 1999, já com 94 anos de idade. Sua trajetória parece confirmar uma reflexão que ela escreveu, assim que chegou à casa de Jung para conhecê-lo: "Nosso plano de desenvolvimento está inserido dentro de nós. Se nós desviamos dele – e esses desvios são sempre trabalho do consciente – “sobressai” a neurose. Reencontrar o seu plano pessoal de desenvolvimento é a cura."

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