'Precisamos conversar com naturalidade sobre doação de órgãos', diz ONG | F5 News - Sergipe Atualizado

Entrevista
'Precisamos conversar com naturalidade sobre doação de órgãos', diz ONG
Presidente do Instituto Doar-se, Viviane Fernandes aposta na conscientização
Cotidiano | Por Monica Pinto 22/09/2024 17h16 - Atualizado em 22/09/2024 17h22


A próxima sexta-feira – 27 de setembro – marca o Dia Nacional da Doação de Órgãos, instituído em 2007 para promover a conscientização da sociedade sobre a importância da doação, inclusive estimulando as pessoas a que conversem com familiares e amigos sobre o tema.

Em Sergipe, o Instituto Doar-se se propõe a fazer exatamente isso. E o ano todo. Fundada e presidida pela cientista social Viviane Fernandes, doutora em Saúde e Ambiente, professora e empresária, a entidade atua em vários eixos, entre os quais promove palestras e outros eventos.

Forma-se também uma “cultura doadora” por intermédio do lançamento de livros paradidáticos, adotados por escolas, a exemplo de “Quel e a máquina”, que traz como personagem uma criança cujo problema nos rins a obriga a fazer hemodiálise.

“Quando a família desconhece o posicionamento do ente querido, ela tende a não autorizar a doação. Por isso, a importância de conversarmos com naturalidade sobre esses contextos que a vida pode nos apresentar algum dia”, defende a diretora presidente do Doar-se.

Nessa entrevista ao F5 News, Viviane Fernandes aponta os principais entraves à doação de órgãos e o quadro atual em Sergipe: o que já teve de meritório e no que precisa avançar. Confira.

F5 News - Qual o panorama da doação de órgãos hoje em Sergipe? Os transplantes continuam sendo renais e de córnea ou esse arco se ampliou?

Viviane Fernandes - Sergipe tem portarias do Ministério da Saúde autorizando a realização de transplantes renal e hepático no Hospital Cirurgia - atividades prestes a serem iniciadas - e renal no Hospital Universitário (HU) de Aracaju, que já iniciou a atividade transplantando inicialmente com doador vivo, tendo feito seis transplantes.

No entanto, esses programas precisam ainda de fortalecimento, rodar com maior fluidez, realizar mais transplantes e não perder o foco no transplante também a partir do falecido, ampliando a expectativa de acesso a esse tratamento para os sergipanos.

O estado também realiza o transplante de medula a partir de células do mesmo indivíduo (autólogo) no Hospital São Lucas, bem como o de córnea em clínicas e hospitais especializados.

F5 News – No que se refere às listas de espera, qual a situação?

Viviane – Em junho de 2024, havia 306 pacientes adultos aguardando na fila para o transplante de córnea e um paciente para transplante de coração, sem nenhum caso pediátrico. Durante o primeiro semestre deste ano, 78 pacientes ingressaram na lista de espera para o procedimento de córnea e um aguardando para o de coração, com zero mortalidade registrada no período. O relatório com esses dados, nacionais e por estado, é produzido pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). É uma instituição não governamental que organiza toda a sistematização das informações e as publiciza trimestralmente para a população.

F5 News – Sergipe teve inclusive momentos de pioneirismo nesse setor, não é?

Viviane – Sim. Sergipe foi o primeiro estado do Norte e Nordeste a realizar um transplante cardíaco, através da parceria entre o médico alagoano José Vanderley Neto e o sergipano José Teles de Mendonça. O paciente transplantado neste momento histórico foi um alagoano, que também se tornou um marco para a cardiologia por ter sido o transplantado cardíaco brasileiro que mais viveu. O senhor Francisco Sebastião de Lima, faleceu ano passado, após 34 anos do referido transplante. Pude ouvir os detalhes dessa história pessoalmente do médico transplantador José Wanderley em sua palestra no 1° Congresso Nordeste Transplantes, em junho deste ano em Salvador, uma verdadeira saga envolvendo muita coragem e uma vontade imensa de realizar por aqui o que já se fazia nos maiores centros do Brasil.

No momento, Sergipe não está com essa modalidade de transplante ativa. Temos condições técnicas, mas ainda não decidimos - como sergipanos -, construir uma nova história inspirada no pioneirismo e ousadia dos primeiros momentos.

F5 News – O que falta?

Viviane - Mais do que a realização do feito, precisamos estabelecer programas pensados para permanecerem, para garantir o acesso ao transplante como o tratamento que é, para mais e mais sergipanos e ainda fortalecendo a formação dos nossos profissionais de saúde.

Além de todos os benefícios que o transplante pode trazer para o transplantado e sua família, é também menos dispendioso para a administração pública, analisando a médio e longo prazos, apontam dados da literatura.

F5 News - O que levou à fundação do Instituto Doar-se?

Viviane – O incômodo com a produção científica, especialmente na interface humanidades e saúde. Os resultados ficam bastante restritos ao “mercado acadêmico” que envolve muito mais os pares e publicações e muito pouco ou quase nada alcançam a realidade pesquisada, as pessoas com as quais a pesquisa é construída.

De um tipo de “extensão universitária” a partir de uma pesquisa sobre qualidade se vida de renais crônicos em hemodiálise nasceu, há oito anos o Projeto Doar-se, e há pouco mais de um ano transformou-se no Instituto Doar-se.

F5 News - A doação se oficializa em meio à dor pela perda de um familiar. Essa circunstância dificulta o processo ou favorece a solidariedade?

Viviane – No geral tende a dificultar, tanto pelo contexto abrupto da morte, desconhecimento do posicionamento do familiar sobre a doação, como devido à nossa população ainda não ser bem consciente sobre o contexto da morte encefálica e sua diferença do coma. Na morte encefálica, também chamada de morte cerebral, temos a morte do cérebro; condição irreversível que em pouco tempo se estenderá aos demais órgãos. No coma, há vida, a configuração de uma vida em luta pelo reestabelecimento, aos poucos, da saúde.

O não conhecimento do processo, dos aspectos da manutenção artificial do corpo enquanto a família toma a decisão, faz por vezes a família que desconhece essa experiência, sentir que está autorizando que seu ente querido seja morto, mas ele já está. Só os aparelhos e a manutenção medicamentosa é realizada para garantir o bom estado dos órgãos através da circulação sanguínea, para que, caso a família autorize a doação, os órgãos estejam nas melhores condições possíveis para que a vida possa continuar para outras pessoas - inscritas em lista de espera -, a partir deste nobre ato.  

Quando a família desconhece o posicionamento do ente querido, ela tende a não autorizar. Por isso, a importância de conversarmos com naturalidade sobre esses contextos que a vida pode nos apresentar algum dia. E sobre a naturalidade com que precisamos aprender a enxergar e a lidar com a finitude, com o objetivo de vivermos melhor.

F5 News - O Doar-se atua bastante na criação e fortalecimento de uma cultura de doação. Quais os principais entraves nesse caminho?

Viviane - Os entraves são desde as famosas notícias falsas à viabilidade financeira para fazermos mais e melhor. Há histórias no imaginário e memórias mais antigas, que envolvem posicionamentos familiares e histórias do tempo dos avós, que colocam o tema num lugar de terror e medo. Isso envolve personagens como o “papa fígado”, por exemplo, e pessoas que surgiram do nada sem órgãos.

Há outras histórias absurdas mais contemporâneas, que apontam insegurança no sistema, como se ter um documento sinalizando que é doador vai levar a pessoa à morte, pois os profissionais de saúde não dariam prioridade a salvá-la, visando querer a todo custo a sua morte para doar os órgãos para um “conhecido”.

F5 News – Em que medida essa desinformação prejudica a decisão de doar órgãos?

Viviane - Esses posicionamentos desdenham e agridem a luta pela vida travada por profissionais junto aos seus pacientes todos os dias. E ainda apontam o profundo desconhecimento, como se para captar e transplantar um órgão fosse possível fazer em qualquer lugar e sem os critérios de compatibilidade e monitoramento biomédico de longo curso; antes e após o transplante.

Enfim, entraves no campo individual, cultural e de história de vida, que apontam a importância e necessidade de avançarmos em nossa missão de conscientização junto à população sergipana e brasileira de setembro a setembro.

F5 News - Os livros que disseminam essa consciência, lançados pelo instituto Doar-se, conseguiram funcionar como multiplicadores junto às famílias dos estudantes?

Viviane – Eles são as nossas principais ferramentas de conscientização, histórias com personagens da vida real que nos ajudam a alavancar a educação doadora. Cada escola que adota, cada professor(a) envolvido que leva a temática, o personagem Quel e seus amigos para seus alunos, nos ajuda a alcançar as famílias. Lembrando que não é um trabalho de convencimento, mas, de conhecimentos “novos” e embasados na ciência, nas práticas dos profissionais de saúde e na experiência de quem enxerga no transplante o tratamento que pode lhe promover mais qualidade de vida e/ou mais tempo de vida.

Assim, decidir não ser ou ser doador de órgãos vai ser uma decisão mais consciente e não a partir do natural medo e insegurança diante do desconhecido. A literatura tem esse poder, de nos fazer mergulhar num contexto e sentir conforme o personagem, sem necessariamente precisar passar pelo problema. Sempre falo isso nas nossas palestras: não precisemos precisar de um órgão para compreender a importância da doação e do transplante.

 

 

 

 

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