História: Médicos em Sergipe nos Jornais do século XIX.
Historiador Amâncio Cardoso mostra que a propaganda já era usada pelos profissionais Cotidiano 18/10/2024 13h30Por Amâncio Cardoso (historiador – acneto@infonet.com.br)
No Brasil, a medicina científica tem como um dos principais marcos a fundação das Faculdades do Rio de Janeiro e Bahia, em 1832. Em 1851, regulamentou-se a disciplina em detrimento dos saberes e práticas populares. Rezava o regulamento: ninguém pode exercer a medicina ou qualquer dos seus ramos sem títulos conferidos pelas Escolas.[1]
Afora a regulação do poder institucional dos profissionais de saúde utilizado contra os saberes e práticas populares para atingir maior campo de ação, os médicos do século XIX também usaram outros expedientes. Um deles foi divulgar seus serviços através de anúncios. Em Sergipe, por exemplo, jornais da época estamparam notas com esse teor. Nelas, é possível identificar nomes, jornadas, especialidades, doenças, técnicas, endereço, entre outras informações.
Examinemos a seguir alguns desses testemunhos.
Em Aracaju de 1857, dois anos após a fundação da capital, o dr. Pedro Autran da Matta e Albuquerque (1829-1886) anunciava seu horário de expediente: das 14 às 16.[2] O médico dedicou pouco tempo às consultas particulares. Uma hipótese foi porque ele acumulou comissões e cargos públicos de inspetor de aulas, comissário vacinador, provedor de saúde e médico municipal.[3] O acúmulo de atribuições denunciava a carência de graduados no serviço público da época, o que impelia os médicos a buscarem tais ocupações, na medida em que a clientela pagante era restrita, dificultando a sobrevivência apenas com a medicina.[4]
Anos depois, em Aracaju de 1879, o cirurgião Luiz Antônio de Faria divulgou sua clínica na rua de Itabaiana.[5] Ele era especialista em partos e moléstias de senhoras.[6] As mulheres começaram a frequentar consultórios em meados do século XIX. Assim, a figura do médico orientador de senhoras vinha substituindo a do padre confessor, comprometendo também a onipotência do pai de família numa sociedade patriarcal.[7] Neste sentido, o confessionário e o lar perderam o controle sobre a alma e o corpo femininos.[8]
Além de Aracaju, outras cidades sergipanas atraíram os discípulos de Hipócrates. Em Maruim, por exemplo, o jovem dr. Juvenal de Oliveira Andrade (1853-?)[9], graduado na Bahia, estabeleceu consultório e anunciou atendimento e visitas grátis aos pobres, em 1877.[10]
O atendimento gratuito aos desvalidos era comum à época. Neste período, institui-se o que o historiador Georges Vigarello denomina “pastoral da miséria”, cujo objetivo era disseminar a higiene burguesa entre os miseráveis no século XIX. A medicina científica seria, portanto, um princípio regenerador dos costumes, misturando filantropia e ideologia moral. Enfim, os médicos se sentiam agentes de um projeto civilizador, iniciado no albor da modernidade europeia no século XVIII.[11]
Um exemplo desse projeto civilizador está expresso em um anúncio de 1886 de um médico em Maruim, o dr. Antônio Freire de Matos Barreto (1859-1918), especialista em “oculística”. Ele anunciou que recebera da Europa ferros e instrumentos.[12] E ressaltou que cirurgias seriam feitas sem dor por meio da cocaína.[13] Novas tecnologias eram importadas pelos “heróis civilizadores”, aproximando o país do modelo de progresso científico do velho continente.
Continuando nosso exame dos anúncios de médicos nos jornais de Sergipe do oitocentos, encontramos em Vila Nova (atual Neópolis) o anúncio de Galdino Teles de Menezes (1857-1915).[14] O médico nascido em Japaratuba/SE, publicou em 1889 que montou clínica em Penedo/AL, mas prometia assistência nas duas margens do São Francisco.[15] Tal diligência era necessária, sobretudo, para um graduado em parto prematuro e artificial, objeto de sua tese defendida na Bahia em 1880.
Ainda em 1889, agora em Propriá, lemos o anúncio do capelense Helvécio de Andrade (1864-1940).[16] De Propriá, dr. Helvécio também se transferiu para Penedo-AL.[17] Talvez a cidade alagoana fosse mais promissora. Penedo, à época, se destacava não apenas como empório regional, mas também como centro difusor de idéias republicanas, geralmente defendidas pelos acadêmicos, e especialmente por dr. Helvécio, que defendia o então novo regime.
Em Penedo, os profissionais sergipanos se estabeleciam para aproveitar a demanda de clientes, o fervor comercial e as discussões político-filosóficas travadas na cidade ribeirinha. Um exemplo foi o sergipano Josino Meneses (1866-1939): farmacêutico, bacharel em Direito e atuante político republicano. Josino era proprietário da Farmácia Americana, transferida de Laranjeiras para Penedo.[18]
À semelhança de Penedo, Laranjeiras também era o nosso centro político e intelectual na segunda metade do oitocentos. Nesse período, vários médicos se estabeleceram na cidade do Cotinguiba e publicaram em anúncios tanto suas especialidades, quanto suas opções ideológicas. A exemplo dos médicos: o espanhol Benito Derizans; o médico baiano e materialista Domingos Guedes Cabral (1852-1883) [19]; e o médico/político propriaense José Rodrigues da Costa Dória (1859-1938) [20]
Dentre os citados acima, o anúncio que mais se distingue é o do cirurgião Benito Derizans (?-1877).[21] Ele divulgou em 1876, recém chegado de uma viagem para cuidar da própria saúde na Europa, que atenderia a qualquer hora do dia ou da noite na rua da Cacimba, atual Engenheiro Xavantes, em Laranjeiras-SE. E mais, que estaria instrumentado para extração de cataratas, e todas as moléstias d’olhos, para partos, enfermidades das senhoras e dos órgãos genitais do homem; a cura radical do hidrocele sem injeção, a dilatação instantânea da uretra, a extração de pedras da bexiga, a dilatação do reto e a eletricidade aplicada à extirpação das hemorroides, a do colo do útero, dos pólipos do útero, as fístulas do ânus, etc.[22]
Estas variadas habilidades técnicas do dr. Derizans, menos que atitudes de polivalente, mais parecem desespero de chefe de família arruinado em dívidas. Pois, em 1874, antes de viajar à Europa, ele anunciara a venda de um sítio, de duas casas acabadas e três por terminar em Laranjeiras.[23] Assim, após seu retorno, suponho que dr. Derizans tentara reaver os bens e o dinheiro investido no exterior, anunciando uma série de habilidades para atingir ampla clientela.
Contudo, seu esforço é ceifado pela pneumonia aguda de que falecera no ano seguinte, em 1877, oito meses após a divulgação do anúncio. Em seu necrológio, se lê: “[Benito Derizans] Deixou numerosa família, (...), em lamentável penúria, porém, herdada pelos tesouros imperecíveis da honra”.[24] O esforço de acúmulo pecuniário de dr. Derizans foi ceifado pela morte, sobrando-lhe ao menos a dignidade.
Além de Laranjeiras, a cidade de São Cristóvão também atraiu alguns médicos, sobretudo antes da mudança da capital em 1855. Anunciou na velha cidade nos anos de 1853 e 1854, por exemplo, o médico baiano Luiz Álvares dos Santos (1825-1886).[25] Ele anotou que só atenderia das 02 da tarde em diante porque se dedicava, no turno matutino, à direção de uma escola particular.[26]
À época, eram raros acadêmicos que sobreviviam apenas da medicina. A profissão começava a se instituir, havia a concorrência dos curandeiros e nem todos podiam pagar pelos honorários. Ademais, os médicos tinham formação abrangente, o que lhes franqueava atuar no ensino, na burocracia, no direito, na política, no jornalismo, nas artes e nos negócios.
Parece que o expediente do uso de jornais pelos médicos, entre outras estratégias, obteve grande eficácia para a consolidação da prática. Pois, ainda hoje, eles ocupam diversas mídias sociais de produção de conhecimento. A impressão dominante é que continuamos a depender, em grande medida, dos saberes e práticas da medicina científica. Neste sentido, no passado e em nossos dias, os doutores estão investidos de autoridade para decidir sobre saúde e doença. Vale dizer, sobre a vida e a morte.
Notas
[1] SANCTOS, Affonso José dos. Regimen Sanitário. Bahia: Litho typographia de J. G. Tourinho, 1881. p. 63.
[2] Pedro Autran nasceu no Recife-PE, mas se graduou pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1854. Clinicou em Sergipe. Aqui serviu em vários cargos e foi deputado pela província. Também foi membro da Academia Imperial de Medicina e 1º Cirurgião do Corpo de Saúde da Armada Imperial. Ele prestou relevantes serviços na Guerra do Paraguai (1864-1870).
[3] Correio Sergipense. Aracaju, 29 abril de 1857, nº 22, p. 4.
[4] Em 1863, o número de médicos em Sergipe era de 17 habilitados. Já em 1866, cai para 15 o número de acadêmicos, segundo a Inspetoria de Saúde. Correio Sergipense. Aracaju, 10 jan. 1863, nº 02 e 30 maio 1866, n. 42, p. 4.
[5] O dr. Luiz Antônio de Faria mudou depois sua clínica para sua residência, na rua d’Aurora. Ele também foi chefe da secretaria do governo de Sergipe, professor de inglês do colégio particular Parthenon Sergipense, inaugurado em Aracaju em fevereiro de 1879. No mesmo ano, foi eleito presidente do Gabinete Literário Sergipano. Em 1880, conferenciou sobre a utilidade da vacina. Jornal de Sergipe. Aracaju, 11 de fevereiro de 1879, nº 17, p. 02. Jornal de Sergipe. Aracaju, 06 de novembro de 1880, nº 98, p. 02.
[6] Jornal de Sergipe. Aracaju, 03 abril de 1879, nº 39, p. 4.
[7] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 144-145, nota 16.
[8] Este processo foi denominado de “medicalização” da sociedade, que compreende o conjunto de mecanismos para construção e intervenção de um discurso médico sistematizado. Tal discurso se realiza na prática da medicina social, inaugurada na Europa em fins do setecentos e início do oitocentos, cujos princípios estabelecem o controle e a vigilância do indivíduo, da população, das instituições e dos espaços através da dilatação de sua influência em áreas como o Direito, a Moral, a Política e a Economia. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996; FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. Sobre a implantação da medicina social no Brasil do oitocentos, ver: MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
[9] Doutor Juvenal Andrade nasceu em 1853, em Simão Dias-SE. Formou-se pela Faculdade da Bahia, em 1876, com a tese “Oftalmia purulenta”. Clinicou em Maruim, Riachuelo, Rosário do Catete e Simão Dias-SE, como obstetra e pediatra. Transferiu-se para São Paulo e em 1895 participou do combate à febre amarela em Araraquara-SP. Faleceu em São Paulo, sem deixar família, em data incerta (SAMARONE et al. 2009).
[10] Jornal do Aracaju. 09 de junho de 1877, nº 810, p. 04.
[11] VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 211-221.
[12] Doutor Antônio Freire nasceu em 1859, em Paris-França. Filho de pais sergipanos. Formou-se pela Faculdade do Rio de Janeiro, em 1883, com a tese “Conjuntivite purulenta do recém-nascido”. Especializou-se em oftalmologia. Clinicou em Maruim-SE, Recife-PE, Casa Branca-SP e Araraquara-SP, onde morou por 30 anos. Foi vereador e provedor da Santa Casa e cafeicultor. É nome de praça em Casa Branca. Faleceu em 1918, em Araraquara/SP. (SAMARONE et al. 2009).
[13] O Maroinense. Maruim, 16 maio de 1886, nº 14, p. 04.
[14] Dr. Galdino nasceu em 1857, em Japaratuba-SE. Formou-se pela Faculdade da Bahia, em 1880, com a tese “Definição, fim e utilidade do parto prematuro artificial”. Foi Secretário de governo da Província (1885-1886) e inspetor de higiene (1892). Faleceu em Brotas-SP, em 1915. (SAMARONE et al. 2009).
[15] São Francisco. Propriá, 08 de março de 1889, nº 02, p. 04.
[16] Dr. Helvécio nasceu em Capela/SE. Formou-se em medicina e farmácia pela Faculdade da Bahia em 1886, defendendo a tese “Da Tuberculose”. Clinicou em Propriá-SE. Em 1887, emigrou para Santos-SP. Em 1900 retornou, estabelecendo-se em Maruim-SE. Em 1910, passou a residir em Aracaju, onde abriu consultório. Publicou vários escritos médicos. Dr. Helvécio faleceu em 1940. (SAMARONE et al. 2009).
[17] São Francisco. Propriá, 17 outubro de 1889, nº 34. p. 04.
[18] Josino Meneses nasceu em Laranjeiras-SE em 1866. Concluiu curso de Farmácia na Faculdade da Bahia, em 1886. Regressou à Laranjeiras, onde montou a Farmácia Americana. Trouxe da faculdade as ideias abolicionistas e republicanas. Divulgou tais ideias pelos jornais ‘O Horizonte’, ‘O Laranjeirense’ e ‘O Republicano’. Em 1888, residiu em Penedo-AL, onde se estabeleceu com farmácia. Ali, participou da fundação do Clube Republicano de Penedo e redigiu a ‘Coluna Republicana’. Com o advento da República, foi deputado e vice-presidente da Assembleia Constituinte de Sergipe (1893-1894) e presidente do Estado de 1902 a 1905.
[19] Guedes Cabral nasceu na Bahia em 1852. Formou-se pela Faculdade de Medicina, em 1875, defendendo a tese ‘Qual o Melhor Tratamento da Febre Amarela?’. A sua tese original ‘Funções do Cérebro’ foi rejeitada pela Faculdade “por conter doutrinas contrárias à religião oficial do Estado” e pelo seu total materialismo. Foi a única tese reprovada pela Faculdade da Bahia. Atuou como clínico na cidade de Laranjeiras por oito anos, exercendo forte influência intelectual sobre os médicos republicanos, a exemplo do médico e historiador Felisbelo Freire (1856-1916). Dr. Guedes regressou para Bahia acometido por tuberculose, falecendo em 1883, com 31 anos. (SAMARONE et al. 2009).
[20] Rodrigues Dória nasceu em Propriá-SE, no ano de 1859. Formou-se pela Faculdade da Bahia, em 1882, com a tese ‘Das febres paludosas tífica’. Exerceu a clínica em Laranjeiras de 1883 a 1885, retornando à Bahia para concorrer à cadeira de Adjunto de medicina legal e toxicologia, sendo aprovado em primeiro lugar. Foi também professor de medicina legal da Faculdade de Direito da Bahia. Governador de Sergipe (1908–1911), deputado federal por quatro legislaturas e deputado Constituinte em 1933. Faleceu em 1938, na Bahia, com 78 anos. (SAMARONE et al. 2009).
[21] De origem espanhola, há registro da atuação de Benito Derizans em Laranjeiras de 1859 a 1876, na área de oftalmologia e urologia. (SAMARONE et al. 2009). Encontrei no acervo da Biblioteca Pública Epifânio Dória, em Aracaju-SE, uma obra de autoria do dr. Derizans, quando de sua viagem à Europa. DERIZANS, Benito. O cholera epidêmico de Larangeiras e o seu melhor tratamento com o sulphato de quinina. Paris: Imprimerie V. Éthiou-Pérou, 1876.
[22] Jornal do Aracaju. 23 de setembro de 1876, nº 734, p. 4.
[23] Jornal do Aracaju. 13 de junho de 1874, nº 492, p. 4.
[24] Jornal do Aracaju. 09 de maio de 1877, nº 801, p. 4.
[25] Luiz Álvares dos Santos nasceu na Ilha de Itaparica-BA. Graduou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1849. Tornou-se professor substituto da Seção de Ciências Médicas da mesma faculdade, em 1861. Depois, foi professor titular da Matéria Médica e Terapêutica, em 1871. Além de médico e professor de medicina, Luiz Álvares foi literato, poeta e orador. (FORTUNA, 2012).
[26] Correio Sergipense. Aracaju, 12 março de 1853 e 16 setembro de 1854, nº 19 e 69, p. 4.
Referências:
FORTUNA, Cristina Maria Mascarenhas (Org.). Memórias Históricas da Faculdade de Medicina da Bahia. Salvador: [s.n], 2012.
SACRAMENTO BLAKE, Augusto Victorino Alves. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902.
SAMARONE, Antônio; DIAS, Lúcio Antônio Prado; ANDRADE, Petrônio Gomes. Dicionário Biográfico de Médicos de Sergipe. Aracaju: Academia Sergipana de Medicina, 2009. Disponível em: https://academiasergipanamedicina.com.br/. Acesso em: 26 de julho 2024.