Interventora do Cirurgia diz que Saúde Pública é “missão no sangue”
Márcia Guimarães faz um balanço do que houve a partir de 2018, ano da intervenção Cotidiano | Por Monica Pinto 28/07/2024 16h37 - Atualizado em 28/07/2024 17h32Corria o ano de 2018 e o Hospital de Cirurgia, em Aracaju, agonizava. Fundada em 1926 pelo médico humanista Augusto Leite, depois transformada em fundação filantrópica, a casa de saúde, alternativa para a população de menos recursos, sucumbia por força de sucessivas más administrações – uma das quais resultou na condenação de um dos ex-diretores, em abril passado, acusado de malversação dos recursos do Cirurgia por meio de transações com empresas “laranjas”.
Diante desse cenário de caos, com vários serviços importantes deixando de ser prestados e funcionários até dois meses sem salários, o Ministério Público de Sergipe resolveu intervir judicialmente e convidou a ser a interventora uma técnica que já estava lá dentro, a pedido do então governador de Sergipe, Belivaldo Chagas, tendo ciência dos processos – e da falta de muitos deles -, de modo a buscar caminhos para salvar o Hospital de Cirurgia.
A enfermeira sergipana Márcia Guimarães, nascida em Aquidabã, já demonstrara sua dedicação e eficiência em fartas doses, o que levou o MP a esse convite. E, sem favor nenhum, tornou-se uma rara unanimidade positiva em Sergipe. Pelos dados de 2023, em relação ao item “Produção Hospitalar de Alta Complexidade SUS em Sergipe”, o Cirurgia respondeu por 63%, com 4661 procedimentos. Ganharam a população de menor renda e, também, significativa parcela da classe média. Para se ter uma ideia, o segundo lugar, o Hospital de Urgências de Sergipe (Huse), administrado pelo Estado, ficou com 20% no mesmo quesito.
Formada pela Universidade Federal de Sergipe, Márcia vê a Saúde como uma missão que a pessoa a trabalhar na área deve “ter no sangue”. Durante essa entrevista, foi às lágrimas várias vezes, inclusive quando falou de cobranças que lhe foram feitas por decidir pela não reabertura do serviço de Radioterapia, sob a justificativa de que a máquina, da década de 70, vivia quebrando e era muito difícil encontrar peças de reposição. O serviço foi reaberto em 2021 com uma máquina nova, fabricada na Suécia.Nessa entrevista ao F5 News, ela conta como foi todo esse processo, os principais desafios e alguns caminhos pelos quais o Hospital de Cirurgia chegou ao final de 2023 na sétima posição do ranking nacional de Alta Complexidade em Cardiologia, entre 442 hospitais. Na Alta Complexidade Neurocirúrgica, ocupa o 28º lugar, entre 418 hospitais por todo o país, e na Oncológica, a 36ª colocação nacionalmente, em meio a 492 casas de saúde. Confira.
F5 News – O que ensejou judicialmente a intervenção do Ministério Público de Sergipe no hospital?
Márcia Guimarães – Em julho de 2018, teve uma operação que se chama Metástase. Como, no Ministério Público, através do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, o GAECO, eles tinham várias denúncias, estavam estudando o hospital desde 2013, e aí, identificando que, mesmo passando para o Estado, não houve melhora, o que eles fizeram? Fizeram uma grande operação para tentar apurar se havia desvio mesmo ou se era má gestão. E em julho fizeram a operação Metástase. Quando eu cheguei aqui, em 23 de agosto de 2018, como cogestora, o hospital estava um verdadeiro caos e em um caminho mesmo para a paralisação total. E aí comecei a identificar diariamente as dificuldades e as necessidades, e fui traçando soluções, abri mesas de negociação, comecei a chamar fornecedores. Na época a oncologia estava parada; 123 dias de aparelho de radioterapia, que era um aparelho da década de 70, ele estava parado e, desde maio, a quimioterapia também estava parada, então culminou com isso tudo - cirurgia cardíaca parada, oncologia parada, neurocirurgia parada e urologia também paralisando. O hospital estava há três anos sem licença sanitária para funcionar. Então eu fui colocando como meta isso, isso e isso.
F5 News – Como foi esse processo da intervenção e como é que você veio a ser a interventora?
Márcia – Sou funcionária pública estadual e municipal e estava como diretora de Gestão de Sistema na Secretaria de Saúde do Estado. Na época, em 2018, o governador Belivaldo Chagas ia para a reeleição e, em 2017, tinha iniciado uma problemática jurídica entre a Secretaria de Saúde do município de Aracaju e o Hospital de Cirurgia, que culminou, no final de 2017, com a saída da contratualização da Secretaria Municipal de Saúde de Aracaju. Então, no final de 2017, o Hospital de Cirurgia passa a ser contratualizado pela Secretaria Estadual de Saúde.
Em outubro [de 2018], recebi um pedido do Ministério Público Estadual para comparecer lá e conversar com eles. Disseram que estavam solicitando a intervenção do hospital e que, pelo que eu já tinha feito nos quase três meses que eu estava aqui, eles gostariam que eu permanecesse, se eu aceitaria. Era uma missão que eu tinha me comprometido com o governador, então aceitei. E assim foi, com o processo de intervenção, se desfez toda a direção e ficou sob minha tutela ter que revisar todos os processos, está lá no termo de intervenção o que precisava ser feito e tal.
F5 News – E isso tem um prazo para acabar?
Márcia – Tinha um prazo, no primeiro eram dois anos, depois renovado ano a ano e, em todo mês de novembro - dia 6 de novembro agora acaba o prazo. Tecnicamente, estou aqui como interventora e a intervenção está até 6 de novembro de 2024. Aí sempre vou antes, presto contas, mostro o que estamos fazendo e eles tomam a decisão, se é renovado ou se não.
F5 News – Se não renovar, o que acontece?Márcia – Retorna para o conselho do hospital, o conselho deliberativo é que escolhe a mesa diretora. Eu acho que a intervenção, para um hospital filantrópico que passou o que passou, não é um processo rápido, precisa se criar uma nova cultura. Quando eu cheguei não existia processo de trabalho, quase nem tinha em um nível assistencial, imagine no nível de gestão. As contas chegavam no dia de pagar, quase todas as transações financeiras eram feitas em boca de caixa, não existia conciliação bancária em um nível que deveria ser e isso consta, inclusive, nos autos do processo de intervenção. Isso tudo a gente teve que fazer, mas fazer com o carro andando, então, até hoje, a gente ainda está no processo.
Esse processo que a gente tem movido há dois anos, que é fazer o hospital ser o primeiro hospital filantrópico a ser acreditado, não é por outra coisa que não seja para garantir uma viabilidade de manutenção de processos administrativos fortes, que façam com que o hospital não seja fácil de um desfazimento para quem quiser chegar aqui. Por quê? Tem portaria para isso, tem procedimento, operação padrão para aquilo; política desenhada financeira, política de fornecedores.
F5 News – Você está desenhando métodos e processos de forma que, mesmo que deixe de ter intervenção, tenham que ser seguidos e não se corra o risco dele voltar para aquele caos completo?
Márcia – Exatamente. Se seguirem esse caminho, mesmo com uma nova diretoria, é só manter o que precisar ser mantido e aperfeiçoar o que precisar ser aperfeiçoado.
F5 News – Em meio à organização do caos, como foi possível se chegar à modernização ocorrida no Cirurgia nos últimos anos?
Márcia – A chegada do doutor Rilton Morais como diretor técnico nos ajudou muito. O diretor técnico escolhido é altamente relevante, principalmente em uma área que se chama hospital, onde a gente tem um nível de complexidade de várias especialidades médicas e não médicas, mas tudo voltado para o tratamento do paciente e conduzido por uma equipe multiprofissional. A gente começou a pensar naquilo que é o que qualquer empresa precisaria ter, que é o planejamento estratégico. A gente fez um planejamento estratégico que foi tipo uma tempestade mesmo de ideias, no ano de 2019, logo no primeiro semestre.
F5 News – Na prática, quais os primeiros passos?
Márcia - Fomos fortalecendo o que a gente tem habilitação em alta complexidade e que, principalmente, é o que o sistema precisa. Por isso, a gente foi tomando decisões voltadas nesse sentido. Na oncologia a gente precisava retomar as quimioterapias, que retornamos eu ainda como cogestora. A radioterapia a gente ainda precisava entender, porque existia um elefante branco aqui, que era aquele prédio. Convidei até o governador para vir visitar e buscar ajuda para poder fazer aquilo ali, foi quando começou a nossa busca por emendas parlamentares. Então a gente teve o planejamento de focar em ações que fossem direcionadas ao fortalecimento de todas as linhas de cuidados essenciais de que a gente pudesse dar conta e, também, planejando ponto a ponto aonde iria.
F5 News – Mas aí quando que você resolveu que ia comprar outra máquina para a radioterapia?
Márcia – Por incrível que pareça, a outra máquina estava com 48% do valor pago há dois anos, através de emenda parlamentar. E esse dinheiro de emenda parlamentar estava no processo judicial da intervenção, porque foi um dinheiro que não foi prestado conta, não foi prestado conta por quê? Porque eles têm um período para começar a fazer e prestar e eles nunca fizeram porque nunca terminaram. Nessa emenda tinha uma tomografia, uma ressonância, o planejamento da radioterapia e o acelerador. O Ministério me deu 30 dias para colocar os equipamentos que estavam aqui encaixotados há dois anos para funcionar e prestar conta para devolver o dinheiro do acelerador, porque não estava. E aí eu entrei em uma negociação com o Ministério da Saúde, aqui em Sergipe. Eu disse “olha, eu não consigo em um mês, mas eu vou conseguir em tanto tempo”.
F5 News – Deu certo?
Márcia - Fizemos um certo acerto de contas, fui em São Paulo com Rilton [diretor técnico] e negociamos com a Elekta o restante do valor do aparelho em parcelas, para que, assim que o site estivesse pronto, e pudessemos receber o equipamento, o que aconteceu. Mas antes disso, “ah, Márcia, e a radioterapia?”. Eu tinha técnico de radioterapia, enfermeira para radioterapia, físico médico e médicos radioterapeutas. O que foi que eu fiz? O Huse [Hospital de Urgências de Sergipe] tinha o equipamento novo e não funcionava no terceiro turno, que é das 18h às 21h ou 22h, porque não tinham pessoas. Eu fui ao governador e ao secretário e ao superintendente do Huse e perguntei se eu não poderia disponibilizar equipe do hospital para trabalhar lá fazendo o terceiro turno e, assim, a fila andar do mesmo jeito. E aí eles aceitaram, nós fizemos e mostramos todos os dados. A equipe foi muito presenteada e a gente manteve, até o nosso equipamento, a turma lá trabalhando.
F5 News – E quando você voltou com a quimioterapia e foi ampliando, teve que contratar mais médicos, não é?
Márcia – Teve, foi crescendo. Teve que vir mais médicos, teve que vir mais especialidades. A gente foi disponibilizando, que não tinha na época, fisioterapeuta, nutricionista, mais enfermeiros, psicólogos, a gente foi agregando para dar à oncologia o que ela hoje é, um grande formato. A gente ainda precisa mais? Precisa, mas o nosso contrato também precisa melhorar, e disso a gente está tratando.
F5 News – E quanto ao crescimento estrutural?
Márcia – A gente foi fazendo um planejamento por blocos. O Hospital de Cirurgia nasceu em 1926 com aquele primeiro bloco lá da frente. Quando a gente foi pegando para fazer a reforma, era pouco dinheiro, então a gente teve que pegar blocos que precisavam melhorar, mas que não exigissem tanto recurso, até chegar nos mais complexos. E o mais complexo foi a unidade de internamento oncológico que a gente tem, onde às vezes a gente tinha que travar leito para colocar os pacientes no corredor porque o sol batia na cara deles. Onde se faz a quimioterapia hoje é muito melhor do que onde estava, que era aqui no ambulatório embaixo, onde a gente está com a nova unidade de cardiologia. Então, melhorou o internamento dando aquela cara de qualidade e dignidade aos pacientes.
F5 News – O que consolidou esse cenário?
Márcia – Uma série de fatores. A equipe certa, a busca pelo planejamento e por parcerias e apoio. Nós tivemos o financiamento das emendas, então deputados estaduais, deputados federais, a bancada federal. O hoje senador Laércio Oliveira mesmo, ele foi grandioso. Só vou dizer que, quando cheguei lá para ele, eu estava em busca de arrecadar cerca de R$ 1 milhão. Ele olhou para mim, olhou o ofício – eu tinha colocado no ofício R$ 500 mil – e ele: "e se eu te der R$ 10 milhões, te ajuda?”. Aí eu disse: “se o senhor der R$ 10 milhões não ajuda, não, é uma coisa estupenda que eu nem imagino”, aí ele disse: “pois eu vou lhe dar R$ 10 milhões”. Na época que chegou, os R$ 10 milhões foram contingenciados, foi já na época da Covid, e os R$ 10 milhões viraram R$ 7,8 mihões porque o Ministério da Saúde diminuiu no valor de cada emenda. E depois ele veio de novo e vieram os outros apoios, de vários parlamentares.
F5 News – Em relação ao aumento de casos de câncer, como fazer frente a um panorama tão desafiador?Márcia - Eu participei da reunião de Unacons e Cacons [Unidades e Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia] que ocorreu em 2022 no Congresso Nacional. Tem lá uma Frente Parlamentar de Oncologia e foi colocado que, de 6 a 10 anos, iria triplicar o número de pessoas com câncer no Brasil. Então, essa questão de virem mais e mais pacientes acontece e vai acontecer mais.
Tecnicamente, a Secretaria de Estado da Saúde precisa entender e se precaver em termos de financiamento para isso, o Ministério da Saúde também. Porque o Ministério da Saúde, para você ter uma habilitação com Unacon, eu não posso dizer ‘não’ para um paciente que chega com câncer ou com alta suspeita de câncer no ambulatório, porque ele é porta aberta. A Secretaria nem contesta se eu marcar a consulta do paciente na Unacon, porque é obrigatório. É uma demanda que tende a crescer e existem as leis com relação ao tempo de atendimento, a gente fica aqui vigiando para que possa fazer no menor tempo possível, e solicitando à Secretaria, também, que nos autorize, porque tudo só pode ser cobrado se tiver autorização.
F5 News – Tem o paciente privado também, que paga o tratamento oncológico?
Márcia – Muito pouco, a gente teria que atender hoje 60% de pacientes SUS e 40% poderia ser suplementar, a gente atende em torno de 90% do SUS. Mas eu não quero diminuir isso porque o sistema vai sentir e eu digo a todo mundo que trabalha aqui e digo para mim, para minha família, não tem, em Sergipe, quem não dependa do Hospital de Cirurgia por algum motivo. Não tem. E também a parceria com hospitais privados, mesmo, uma coisa de ida e volta. A gente tem, aqui no hospital, os pacientes mais complexos não são feitos em outros hospitais, são feitos aqui, então quando tem, muitas vezes, uma cirurgia complexa em outro hospital, privado, que, muitas vezes, o material é um material que não tem muita saída para eles, quem tem é a gente. Porque o nosso compromisso é com o cuidado, é com a pessoa, independente dela estar aqui ou fora. Vimos muito isso na pandemia, o kit intubação, os sedativos, o material, equipamentos, a gente recebeu doações da Fecomércio e do Grupo Lide de 20 ventiladores pulmonares, naquela época a gente também pode ajudar outros hospitais que estavam precisando, fizemos trocas.
F5 News – Você percebe reconhecimento por parte da sociedade?
Márcia - E eu fico muito feliz quando recebo as ouvidorias ou, às vezes, as mensagens. Teve um vereador que esteve aqui e disse que queria falar comigo. Isso logo em um ano que eu estava aqui. Ele me falou: “só vim aqui para dizer à senhora que eu estava visitando uma pessoa e seus funcionários entrando, voltando, saindo, rindo, e eu disse assim ‘vocês estão rindo muito, vocês estão felizes, é? Por acaso já receberam o salário?’, e aí eles disseram que sim, que estavam recebendo em dia”. Daí o vereador explicou: “eu vim aqui porque, da última vez que estive aqui com meu pai, era todo mundo com a cara feia pedindo dinheiro até para comprar pão para lanche”.