Abolição da Escravatura: da polêmica medida de Ruy Barbosa ao primeiro senador negro | F5 News - Sergipe Atualizado

Olhos na História
Abolição da Escravatura: da polêmica medida de Ruy Barbosa ao primeiro senador negro
História de gerações de negros é destruída e libertos não recebem apoio para nova vida
Cotidiano | Por Monica Pinto 15/05/2022 15h44 - Atualizado em 16/05/2022 15h36


Um dos intelectuais mais aclamados da história brasileira, o baiano Ruy Barbosa atuou em diversos campos, a exemplo de advogado, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador. Porém, foi como jornalista que mais expressou sua luta pela abolição da escravatura no país. Ele viria a protagonizar, no entanto, um dos episódios mais polêmicos após a sanção da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

Proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, Ruy Barbosa foi escolhido para ministro da Fazenda do Governo Provisório. No cargo, ele assinou um despacho, em dezembro do ano seguinte, 1890, ordenando a destruição dos registros referentes ao período escravista no Brasil, que deviam ser enviados para a capital, onde ocorreria a “queima imediata deles”.

No documento, o jurista e político classificou a escravatura como "instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosfera moral". E ponderava que a República era "obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira".

Conforme noticiou O Estado de S.Paulo, na edição de 23 de dezembro de 1890, uma moção de apoio ao despacho de Ruy Barbosa foi votada e aprovada no Congresso Nacional. Mas não sem oposição. Representantes de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul se colocaram contra a medida.

Um dos opositores foi o deputado Francisco Coelho Duarte Badaró (MG). "A nossa vida é nova, mas precisamos ter a nossa história escrita com provas verdadeiras. Pelo fato de mandar queimar grande número de documentos para a história do Brasil, a vergonha nunca desaparecerá, nunca se poderão apagar da nossa história os vestígios da escravidão", argumentou, segundo a publicação.

A versão aceita por muitos historiadores é de que o ministro da Fazenda buscava impedir a viabilidade do pleito de senhores de escravizados libertos pela Lei Áurea, que queriam ser ressarcidos pela República, alegando prejuízos financeiros causados a eles pela abolição.

De fato, pouco antes de Ruy Barbosa decretar a queima de registros, o ministro negou um requerimento apresentando as bases para a “fundação de um banco encarregado de indenizar os ex-proprietários de escravos ou seus herdeiros, dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888, deduzidos 50% de seu valor em favor da República”.  

Respondeu Ruy Barbosa, conforme despacho no Diário Oficial de 12 de novembro de 1890: “Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos, não onerando o Tesouro. Indeferido.”.

Mesmo admitindo que o decreto de Ruy Barbosa tenha sido pautado por boas intenções, na prática, ele literalmente incendiou a possibilidade dos negros descobrirem suas origens, sua ancestralidade. Quando os africanos chegavam ao Brasil, recebiam nomes que os vinculavam aos portos de venda e embarque, uma estratégia para apartá-los de suas vidas antes do aprisionamento. Outra forma de minar a resistência dos cativos era a separação de famílias e de membros das mesmas comunidades na África.

As fogueiras de Ruy Barbosa atingiram não apenas os registros de escravizados, mas também de seus filhos, netos e bisnetos, inclusive os nascidos livres, extinguindo-se toda a chance de recuperação histórica para esse universo. E, sob a lógica de impedir que os escravocratas pleiteassem indenização, ao mesmo tempo privou os ex-escravizados e seus descendentes de tentar buscar esse direito.

A voz do primeiro senador negro

Um dos grandes críticos do discurso oficial sobre a abolição da escravatura foi o primeiro senador afrodescendente do Brasil – o escritor, dramaturgo e professor Abdias Nascimento (PDT/RJ), expoente do movimento negro durante décadas. Ele tomou posse em 1991, como suplente do antropólogo, sociólogo e historiador Darcy Ribeiro. Em 1997, assumiu o mandato em definitivo, pela morte do titular.

Numa sessão plenária comemorativa aos 110 anos da Lei Áurea, em 1998, Abdias Nascimento lembrou a situação dos libertos, que não receberam qualquer apoio para sua integração à sociedade e ao exercício da cidadania. “No dia 13 de maio de 1888, negros de todo o país puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida, apenas para acordar no dia 14 com a enorme ressaca produzida por uma dúvida atroz: o que fazer com esse tipo de liberdade? Para muitos, a resposta seria permanecer nas mesmas fazendas, realizando o mesmo trabalho, mas sob piores condições. Não sendo mais um investimento, o negro agora era livre para escolher a ponte sob a qual preferia morrer”.

O senador afirmou ainda que essa lacuna da Lei Áurea prosseguia “golpeando a população negra” mais de cem anos após sua sanção. “Sem terras para cultivar e enfrentando no mercado de trabalho a competição dos imigrantes europeus, em geral incentivados pelo governo brasileiro, preocupado em branquear física e culturalmente a nossa população, os descendentes de africanos entraram numa nova etapa de sua via-crúcis. De escravos, passaram a favelados, meninos de rua, vítimas preferenciais da violência policial, discriminados nas esferas da Justiça e do mercado de trabalho, invisibilizados nos meios de comunicação, negados nos seus valores, na sua religião e na sua cultura”.

Abdias questionava inclusive o título de primeiro senador negro, alegando que políticos antes dele apenas não se identificaram como tal. Assim, ressaltou que era o primeiro senador negro “a assumir orgulhosamente sua etnia, sua cultura e religião, suas origens africanas e, sobretudo, a luta coletiva do povo africano em nosso país”.

Em diferentes ocasiões, como deputado federal ou senador, teve embates com os colegas parlamentares. Numa reportagem de homenagem a Abdias Nascimento, a Agência Senado registrou um desses episódios, quando o deputado Carlos Sant’Anna (PMDB/BA) disse não haver racismo no Brasil. “Quem sabe do racismo são aqueles que o sofrem, e não Vossa Excelência, que pertence à classe dos privilegiados”, rebateu Abdias.

Nesta segunda-feira, o racismo é o tema da quarta e última matéria da série "Olhos na História", sobre a abolição da escravatura.

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