Sancionada em 2001, a Lei nº 10.257, denominada “Estatuto das Cidades", estabelece diretrizes gerais para a regulamentação do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. A sua primeira norma determina a garantia de direito às cidades sustentáveis para as gerações presentes e futuras, que estaria compreendido no direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, a transportes e serviços públicos e a trabalho e lazer. Mas será que, mais de duas décadas depois, essa lei é integralmente cumprida na prática?
Na capital sergipana, muitos fatores indicam que não, especialmente quando se olha para a mobilidade urbana. Aracaju e região metropolitana - Nossa Senhora do Socorro, Barra dos Coqueiros e São Cristóvão - contam com uma frota de 527 ônibus para operar 97 linhas e 12 corujões que cobrem toda a região. Para atender a demanda de mais de 130 mil passageiros que circulam no transporte coletivo diariamente e promover a mobilidade entre as cidades, o sistema dispõe também de oito Terminais de Integração, sob a mesma tarifa de R$ 4,50.
Na Zona Norte de Aracaju, o Terminal da Maracaju. Na Zona Sul, o Terminal Atalaia. Para quem passa pela região central, o Terminal do Mercado. Na Zona Leste, o Terminal DIA é um dos mais movimentados da cidade. Já na Zona Oeste da capital, há o Terminal Leonel Brizola. Em São Cristóvão, está o Terminal Campus, fundamental para o deslocamento para a Universidade Federal de Sergipe (UFS). Em Nossa Senhora do Socorro, o Terminal Marcos Freire garante aos cidadãos a migração pendular, assim como o Terminal da Barra dos Coqueiros. Pelo menos essa é a proposta.
Mesmo com toda a capacidade de integração e promoção da mobilidade plena, o serviço de transporte público em Aracaju ainda é alvo constante de críticas e insatisfação da população e de especialistas no assunto. Isso porque, antes mesmo de conseguir chegar até um desses terminais, o cidadão já enfrenta uma série de adversidades durante os deslocamentos pela cidade.
É o que explica a arquiteta e professora da UFS Rozana Rivas de Araujo, especialista em planejamento urbano. Segundo ela, o grande problema da mobilidade urbana em Aracaju é que o sistema de transporte público não parece ter sido pensado juntamente ao planejamento urbano da cidade. Basta dizer que o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do município não é atualizado desde 2000. Um novo está em fase construção, mas ainda não foi aprovado.
Para a especialista, o exemplo mais claro disso está nas calçadas, que não possuem uma unidade entre si, tornando quase inviável que o aracajuano consiga se locomover a pé. "Às vezes você precisa pegar um carro só para atravessar a rua, ou você tem que andar junto com os carros”, pontua Rivas. Mas, segundo a Lei nº 12.587/12, que estabelece as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, a prioridade deve ser sempre do pedestre, seguido do ciclista e do transporte coletivo.
Essa desconformidade não é observada apenas nas calçadas. A arquiteta aponta que o constante crescimento da capital sergipana para áreas menos habitadas e mais distantes, como é o caso da Zona de Expansão, constrói uma cidade “fragmentada”. “É muito espaço desolado, muito espaço sem ninguém. Há poucas pessoas andando”, explica.
De acordo com Rivas, essa questão por si só já interfere na priorização dos veículos de uso próprio em detrimento do transporte público, já que, para chegar a um ponto de ônibus, os moradores de regiões como essa precisam não só andar longas distâncias, como também passar por caminhos pouco arborizados, pouco movimentados e sem calçadas preparadas, ou seja, nada convidativos à caminhada.
O resultado é que a cidade fica cada vez mais cheia de carros, que engolem o espaço dos outros modais e, consequentemente, acarretam em problemas como congestionamentos e violência no trânsito. “A questão não é o carro em si. O carro é muito prático, você vai a qualquer hora, a qualquer lugar, mas não pode ser a primeira opção de todo mundo. Eu posso ter meu carro na garagem, mas preferir pegar um transporte público de qualidade. O fato é que não se está olhando para os outros modais”, aponta Rozana Rivas.
Para o engenheiro civil e professor da UFS Joelson Hora Costa, que é especialista em transportes, existe uma relação direta entre o aumento dos carros nas ruas e a piora do transporte público. Segundo ele, o tempo gasto no trânsito, os congestionamentos e acidentes, oriundos do crescimento desenfreado de veículos, estão entre os problemas urbanos que mais deterioram a qualidade de vida nas cidades, o que consequentemente traz efeitos como a redução do tempo livre do cidadão, da produtividade e da economia.
Apesar disso, o especialista acredita que o transporte público não se apresenta como alternativa para grande parte da população. “O que se vê atualmente são ônibus superlotados, falta de pontualidade, baixa frequência entre viagens, e os usuários cativos, que dependem desse modo de transporte para se deslocarem pela cidade, ficam reféns dessa situação. Comparado com o deslocamento por veículo particular, o deslocamento realizado por transporte público é menos atrativo, pois oferece menos conforto, falta de flexibilidade no percurso, impossibilidade de fazer paradas intermediárias”, justifica.
É assim que, segundo o engenheiro, cria-se um ciclo vicioso. “A ineficiência do transporte público leva à perda dos passageiros que, em geral, migram para o transporte privado e, com menor demanda, a arrecadação do transporte público diminui, levando a aumentos de custos e a pressões para a elevação da tarifa, desestimulando a adesão dos passageiros”, explica Hora.
Fugas do coletivo
Como apontado por Joelson Hora, são diversos os motivos que levam um cidadão a não utilizar o sistema de transporte público. Para a arquiteta Natália Guimarães, de 24 anos, a justificativa é a pouca disponibilidade dos ônibus em seu dia a dia.
Moradora da Zona de Expansão de Aracaju, ela convive com a baixa oferta do transporte para a localidade, além de considerar os pontos de ônibus da região inseguros por serem pouco movimentados. Assim, só lhe resta utilizar o carro particular ou pagar corridas com preços exorbitantes em aplicativos de mobilidade.
Todavia, ela afirma que, caso os problemas que envolvem o sistema de transporte público na capital sergipana fossem resolvidos, o coletivo seria sua primeira opção. “Seria mais econômico, apesar de a tarifa hoje ser muito alta em relação à qualidade do serviço, além de melhor para a cidade como um todo. Gostaria de ter essa opção, pois acredito que uma cidade com transporte público de qualidade influencia bastante na qualidade de vida, no meio ambiente, diminui os engarrafamentos”, considera Natália.
Já o engenheiro civil Carlos Enrique, de 24 anos, deixou de utilizar o ônibus por medo. Até pouco mais de três anos, o transporte coletivo era seu único meio de locomoção em Aracaju, mas foi em uma noite de janeiro de 2020 que isso mudou. Enquanto aguardava a chegada do transporte em um ponto de ônibus quase na porta de sua casa, ele foi assaltado. “Um rapaz que estava sentado no ponto colocou uma faca na minha costela e mandou eu passar tudo que tinha”, relata. Desde então, Carlos, que não tem um veículo próprio, prefere se virar para conseguir caronas ou precisa pagar por corridas de aplicativo, tudo para não ser vítima da violência urbana mais uma vez.
A jornalista e pesquisadora Gabriella Ferreira, de 24 anos, por sua vez, faz uso dos mais variados tipos de deslocamento. Como não possui carro próprio, ela chega ao seu destino a pé, se for possível. Quando não, tenta conseguir caronas ou solicita corridas de aplicativo. Contudo, seu único meio de transporte para a Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde tem aula três vezes por semana, era o ônibus. Era. Isso porque, por conta da superlotação, ela acabou tendo uma crise de pânico.
“Estava voltando da UFS no horário das 18h. O ônibus estava bem cheio e o tempo estava meio chuvoso, então algumas janelas estavam fechadas. Aí eu comecei a me sentir mal pela quantidade de gente que tinha no ônibus. Uma sensação horrível de sufocamento e desespero. Não sabia o que fazer. Fiz o trajeto da UFS até o DIA passando mal e resolvi voltar andando para casa em vez de pegar outro ônibus no DIA”, detalha. Hoje, ela prefere pagar mais caro em aplicativos de mobilidade a reviver o trauma, mas acredita que o problema da superlotação poderia ser resolvido com a oferta de mais linhas de ônibus.
O planeta paga o preço
Junto a todas essas questões, somam-se os já conhecidos impactos ambientais causados pela produção de lixo automotivo e pela emissão de gases poluentes resultantes da queima dos combustíveis. Apesar de não terem sido encontrados levantamentos em relação a essa problemática na capital sergipana, essa já é uma preocupação em grandes centros urbanos como a cidade de São Paulo, onde a poluição do ar ficou acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde nos últimos 22 anos, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema).
Outro estudo realizado pelo Iema mostrou que, em 2017, os automóveis - carros e motos - eram responsáveis por 75% das emissões de gases do efeito estufa em São Paulo, apesar de esses serem os meios de transporte de apenas 30% da população da cidade. E quando observado o aumento considerável da frota de automóveis em Aracaju, não é possível ignorar o problema.
Não há espaço para os menores
Essa disputa por espaço não atinge apenas os usuários do transporte coletivo. O estudante Túlio de Araújo Rocha, de 22 anos, sente esse aperto no cotidiano. Desde 2017, ele tem a bicicleta como seu principal meio de locomoção, raramente utilizando outras formas para chegar ao seu destino, seja pela independência proporcionada pelo veículo ou simplesmente por lazer. “Gosto mesmo de pedalar, gosto de disputar o espaço da pista, de fazer o próprio caminho, poder escolher o trajeto e afins”, diz.
Entretanto, as queixas do ciclista em relação à cidade não são poucas. Para ele, apesar de contar com 70 quilômetros de vias ciclísticas, entre ciclovias e ciclofaixas, Aracaju não disponibiliza os recursos necessários para que o ciclista pedale sem se preocupar com a própria segurança. Desde que começou a pedalar, Túlio já passou por vários perrengues. Além de precisar desviar dos buracos e outros obstáculos nas ciclovias, o estudante já chegou a ser atropelado por carros três vezes em apenas um mês, e ainda leva uma tentativa de assalto nessa bagagem.
“É muito chato ter que ficar se preocupando em não furar o pneu quando só se deseja voltar para casa. Os motoristas em Aracaju não são muito empáticos com os ciclistas. Os assaltos são quase uma certeza em alguns lugares e em alguns horários. Já sofri uma tentativa de assalto, felizmente correu tudo bem, fora o susto, mas tive que pular da ciclovia para me salvar. Não me sinto seguro nas ciclovias. Na verdade, andando de bicicleta em Aracaju, só me sinto seguro realmente em grupo”, lamenta.
Outro descontentamento de Túlio em relação à mobilidade para os ciclistas na capital sergipana é o fato de que muitas das principais vias da cidade, como a avenida Hermes Fontes e suas extensões, não possuem ciclovias ou espaço para o trânsito livre de bicicletas. “É muito estranho, pois uma imensa parte dos ciclistas utiliza essas avenidas como parte do seu trajeto, seja por casualidade, atividade física, ou só voltar para casa do trabalho mesmo”, afirma.
O estudante também acredita que, mesmo quando as ciclovias estão disponíveis, elas não cumprem a proposta. “É o exemplo da Tancredo Neves. Ela é absurdamente precarizada no sentido de que é desgastada, não tem reajuste nela há anos e há uma certa dificuldade em pedalar por ela, já que temos de desviar dos buracos e pedras que existem na ciclovia”, complementa.
De acordo com o engenheiro Joelson Hora, as soluções para esse problema vão muito além de assegurar o espaço físico das ciclofaixas. Segundo ele, é preciso melhorar a segurança em relação ao fluxo dos demais veículos, promover a continuidade das vias e a integração com os demais modais de transporte, inclusive como forma de conectá-las ao transporte público, e ainda a proteção dos ciclistas em relação à ação do sol intenso e temperaturas altas, por meio da arborização da cidade.
Um longo caminho
O que o poder público tem feito para resolver essas questões? Para reduzir os impactos ambientais do lixo automotivo, a Empresa Municipal de Serviços Urbanos (Emsurb) recolhe os pneus descartados indevidamente em espaços públicos e em borracharias previamente cadastradas. Segundo o órgão, são recolhidas cerca de 12 toneladas mensais em Aracaju. Vale ressaltar que um pneu leva aproximadamente 600 anos para se decompor.
Os proprietários de borracharias podem realizar o cadastro por meio da plataforma Ajulnteligente ou no setor de Protocolo da Emsurb, que fica na portaria do Parque da Sementeira. Além disso, os próprios cidadãos também podem descartar os pneus nos Ecopontos, que estão distribuídos nos bairros Industrial, Coroa do Meio, Santos Dumont, 17 de Março, Inácio Barbosa e Ponto Novo.
De acordo com o superintendente municipal de Transportes de Trânsito de Aracaju, Renato Telles, a Prefeitura também vem realizando uma série de ações com o intuito de melhorar o serviço de transporte público ofertado à população, como a renovação da frota de ônibus em 2022. Ao todo, foram adquiridos 50 novos veículos para operação, o que representou uma renovação de mais de 10%.
Ainda de acordo com Telles, o Município também tem promovido melhorias estruturais de vias, corredores, pavimentos, sinalização e asfaltos, bem como dos terminais de ônibus. “Hoje, praticamente todos têm uma qualidade muito melhor do que como foram encontrados, por exemplo, lá em 2017. O novo terminal do Mercado foi inaugurado, assim como o do Maracaju, totalmente renovado, o do Centro também foi requalificado, o Terminal do DIA, que está a dias de ficar pronto, e vamos requalificar também agora o Terminal Leonel Brizola, da Zona Oeste, entregando assim os terminais da cidade de Aracaju com um novo padrão de qualidade”, afirma.
Entretanto, o especialista em transportes Joelson Hora acredita que melhorias infra estruturais não são suficientes para resolver a problemática da mobilidade urbana na capital sergipana. “Somente com ações como a construção de viadutos e novas faixas de rolamento, o problema não será resolvido. A infraestrutura viária tem limites e, portanto, não adianta simplesmente aumentar a oferta de vias para resolver o problema, até porque os custos com desapropriações de imóveis para alargamento de vias, nas áreas centrais das cidades inviabilizam sobremodo os investimentos ", argumenta.
Segundo o engenheiro, a solução real envolve planejamento a longo prazo e com altos investimentos públicos. Ele aponta que a implantação de corredores preferenciais de transporte público é uma boa opção, mas essa deve ser feita da forma correta para funcionar. “Ela deve ser realizada buscando racionalizar a operação, com a otimização da frota e a redução de viagens; diminuir a interferência dos veículos particulares nos trajetos realizados pelos ônibus; dar prioridade do sistema viário ao transporte coletivo, por meio da adequada sinalização semafórica, promovendo assim, aumento da velocidade operacional e, consequentemente, redução no tempo das viagens”, detalha.
Por enquanto, o que o aracajuano vê são vias preferenciais não sendo utilizadas pelos ônibus ou sendo ocupadas por outros veículos, como é o caso do corredor da avenida Hermes Fontes, até hoje uma incógnita para a população. Em 2019, a avenida passou por uma drástica intervenção cujo objetivo inicial seria implementar o sistema de BRT na cidade, de forma que Hermes Fontes seria o ponto de partida para toda essa mudança. As obras foram entregues, mas nada foi feito em relação às suas intenções iniciais. Para Joelson, o que hoje é motivo de críticas à Prefeitura de Aracaju, que pouco ou nada se pronuncia sobre, poderia ser um “passo inicial” para a mudança no conceito de transporte coletivo na cidade.
Em construção, o novo Plano Diretor de Aracaju elenca uma série de diretrizes como a promoção de uma cidade sustentável, a melhoria da eficiência da rede viária e dos serviços de transporte, com a prevalência do uso público sobre o privado, a implementação de políticas de mobilidade urbana sustentável, por meio da ampliação do transporte público coletivo seguro e eficiente e do transporte não motorizado, redução de custos e do tempo de deslocamento na cidade, além de muitas outras. Basta esperar sair do papel.
Expediente
Reportagem: Ana Luísa Andrade
Fotografia: Pedro Ramos/Especial para F5 News
Produção audiovisual: Emerson Esteves e Pedro Ramos
Desenvolvimento: Goweb Tecnologia
Editora F5 News: Monica Pinto
Coordenação: Anic Rios