A vida de quem não tem um lugar digno para morar em meio à pandemia
Falta de acesso à habitação persiste e desafia efetivação da cidadania Cotidiano | Por Will Rodriguez 28/10/2021 10h34A falta de um teto para morar tirou de Cida a vontade de viver. Mãe de oito, dois mortos - um no ventre e outro aos 19 anos - a alagoana se mudou para Aracaju ainda na adolescência. Desempregada, aos 43 anos, depende da ajuda de conhecidos para pagar o aluguel da casa para onde teve que se mudar desde que foi despejada junto com outras 80 famílias que viviam na ocupação João Mulungu, no centro da capital sergipana, em maio deste ano, quando o país ainda atravessava a fase mais aguda da segunda onda da pandemia da Covid-19.
Cida dá rosto ao drama de milhares de famílias brasileiras que, vivendo em situação de vulnerabilidade, esperam sem perspectiva pelo direito à moradia. Com o agravamento da situação pela crise sanitária, coube ao Poder Judiciário a tentativa de aplacar as já severas consequências do déficit habitacional para a população.
Maria Aparecida se mudou para ocupação após telhado de sua casa desabar
A ocupação João Mulungu se formou em novembro de 2020 em um prédio abandonado na avenida Ivo do Prado, uma das mais tradicionais do centro histórico. A construtora proprietária do imóvel teve o pedido de reintegração de posse negado pela Justiça duas vezes consecutivas, mas na terceira obteve uma liminar, executada pela Polícia Militar em menos de 48 horas - sem notificação prévia dos sem-teto que habitavam o local.
Seus pais lhe registraram como Maria Aparecida, mas Cida não teve a oportunidade de aprender a escrever o próprio nome. Analfabeta, encontrou na biblioteca da João Mulungu a possibilidade de conhecer as letras.
À ESPERA DE UM LAR
VIDA NA OCUPAÇÃO
A lógica do planejamento urbano que deveria concentrar a população onde já existam serviços e infraestrutura social é invertida ao se projetar conjuntos e bairros muito afastados das centralidades vitais. É o que os pesquisadores chamam de periferização da moradia.
Esse movimento é percebido em Aracaju. Habitações inacabadas, sem rede de esgoto, com abastecimento irregular de água, sem coleta seletiva, além do difícil acesso aos equipamentos públicos de saúde, educação e lazer, por exemplo, fazem parte do cotidiano de uma parcela da população que se sente invisível. Esse é o caso dos moradores da ocupação Valdice Teles, no bairro 17 de março, na zona sul da capital, que se formou no final de 2019.
Valdice Teles
Nos despachos que suspenderam as ordens de reintegração de posse da João Mulungu, a juíza Cléa Monteiro Alves Schlingmann, da 9ª Vara Cível da Comarca de Aracaju, afirmou que como a pandemia acarreta consequências danosas para a vida das pessoas e para a economia do país, tornou-se necessário autorizar “a permanência de pessoas, ameaçadas de despejo, em isolamento em suas residências, preservando a saúde delas, ao tempo que não as põe em eventual necessidade de aglomeração, o que aumentaria a situação de risco".
Essa decisão foi reconsiderada pelo juiz Isaac Soares de Lima, que autorizou o despejo dos ocupantes em meio à crise sanitária, contrariando entendimento já pacificado pelo Poder Judiciário. “Restou efetivamente apurado que a maioria das famílias dispõem de endereço fixo, e utilizam o espaço da ocupação como um movimento de formação e resistência na luta por moradia”, alegou o magistrado, acrescentando quanto à vulnerabilidade, “que apenas um número mínimo de famílias estão enquadradas para inserção em benefícios”.
Em maio de 2020, portanto um ano antes, o Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE) publicou provimento do Corregedor-Geral em exercício, o desembargador Luiz Antônio Araújo Mendonça, estabelecendo que os pedidos de reintegração de posse deveriam ser apreciados com base em Recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que evitem despejos e remoções coletivas durante a pandemia de Covid-19, considerando que a atuação judicial deve se pautar pela proteção da vida.
JUDICIÁRIO EM AÇÃO
Reintegração / Manutenção de Posse
Requerimento de Reintegração de Posse
Para o advogado Robson Barros, representante da comissão de direitos humanos da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SE), há o entendimento pacificado sobre o dever do Judiciário de acionar os entes públicos para que, em situações de conflito, tanto o direito de propriedade quanto o direito à moradia sejam preservados paralelamente, sem deixar de considerar a situação de vulnerabilidade das famílias sem teto.
Prédio particular ocupado pela João Mulungu no centro de Aracaju
No caso da reintegração da João Mulungu, que foi acompanhada por Robson Barros, ele afirma que houve violação dos direitos humanos, o que levou a Comissão a acionar autoridades estaduais e também organismos internacionais para reportar a situação.
“O momento da pandemia era crítico e a recomendação do TJ não foi observada. Além de ser realizada no final de semana, houve uso desnecessário da força, uma vez que, as famílias demonstraram disposição para o diálogo. Nós chegamos ao local por volta de 7h, mas só tivemos acesso ao prédio por volta de 8h40 quando todos já tinham sido retirados do local”, afirma Barros.
O advogado acrescentou que a Comissão já tinha elaborado um relatório sobre a situação socioeconômica daquelas famílias, considerado na decisão judicial que indeferiu o pedido de despejo, e cerca de 16 delas ficaram sem ter para onde ir. “O que aconteceu ali quebrou um ciclo de avanços do Estado no gerenciamento de crises dessa natureza, porque há cerca de 7 anos não havia registro de reintegração com uso de força”, completou Robson Barros.
Uma audiência de conciliação para tratar do processo da João Mulungu está marcada para o dia 4 de novembro.
Sede do Poder Judiciário sergipano na Praça Fausto Cardoso
No começo do mês, o presidente da República Jair Bolsonaro promulgou a lei que proíbe o despejo ou a desocupação de imóveis comerciais ou residenciais até o fim de 2021, em razão da pandemia de covid-19. Esse trecho da Lei nº 14.216/2021 havia sido vetado pelo Executivo em agosto, mas o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional um mês depois.
Após 31 de dezembro de 2021, o Poder Judiciário deverá realizar audiência de mediação entre as partes, com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, nos processos que estejam em tramitação.
OCUPAÇÃO URBANA
As quase sempre tumultuadas cenas de reintegração de posse descortinam um problema crônico da imensa maioria das cidades brasileiras, dentre as quais Aracaju. A falta de acesso à habitação atravessa perene o desenvolvimento da nossa sociedade e desafia a consolidação da cidadania.
Esse diagnóstico está em um estudo elaborado pelo Trapiche, o Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe (UFS) a partir da problemática enfrentada na João Mulungu.
Vazios Urbanos
O documento mapeou os vazios urbanos da região e pelo menos três prédios, incluindo o da João Mulungu, que já podem ser classificados como ‘não utilizados’, em condições de serem desapropriados, com base no Plano Diretor e no Estatuto das Cidades, para que a Prefeitura possa implantar empreendimentos que atendam à função social da propriedade, sendo uma delas, o uso habitacional.
Após fazer um retrospecto cronológico das políticas urbanísticas adotadas pelos Executivos aracajuanos nas últimas décadas, o estudo revela como elas acabaram por afastar a população, sobretudo as de mais baixa renda, dos espaços com infraestrutura, das ofertas de trabalho e de serviços públicos básicos como o transporte coletivo. Essa ‘segregação socioespacial das camadas populares’, aponta o Trapiche, acarreta mais gastos ao Poder Público.
“A população que mora em assentamentos precários em Aracaju triplicou, passando de 2,4% para 10,8% da população total. O que representa atualmente mais de 60 mil pessoas vivendo em aglomerados subnormais. Isso significa um número de habitantes maior que o de 69 dos 75 municípios do estado”, cita Mateus Lima, um dos autores da pesquisa.
Na sequência, é demonstrada a viabilidade espacial, institucional e financeira de instituição de programas habitacionais capazes de garantir que mais aracajuanos tenham assegurados os direitos à cidade e moradia digna.
O estudo apresenta o conceito de produção de habitação por meio da autogestão como a “forma mais viável de reduzir custos, fomentar a participação social e a autonomia popular”, além de defender “o direito à centralidade como fundamental para a inclusão social dos ocupantes na cidade e na cadeia produtiva”.
O QUE DIZ O PODER PÚBLICO
Ao F5News, a Secretaria de Estado da Inclusão, Assistência Social e do Trabalho (Seit) disse que atualmente mantém 372 beneficiários no aluguel social pago mensalmente, no valor de R$ 300. Segundo a pasta, essa é uma ação complementar do governo estadual, já que os sistemas de assistência social são municipalizados.
Pertences de sem-teto em praça na zona sul de Aracaju
A Prefeitura de Aracaju disse haver um planejamento para ocupação dos vazios urbanos no município que, segundo a gestão, estão predominantemente em áreas particulares. “O tema está em discussão na minuta de revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), onde estão propostos instrumentos urbanísticos que determinam a função social da propriedade”, informou a PMA
Atualmente, o Município faz o repasse do aluguel social para cerca de 2.500 famílias.
O Executivo municipal também afirmou que executa três projetos para construção de moradias populares e um projeto para melhoria de habitações precárias, com investimentos que incluem a infraestrutura das localidades, são eles:
1 - Construção de 1.102 unidades habitacionais na área das Mangabeiras, no bairro 17 de Março. Investimento previsto de R$ 110 milhões.
2 - Construção de 386 unidades habitacionais em terreno vizinho ao Residencial Vitória da Resistência, no bairro Lamarão. Investimento previsto de R$ 35 milhões
3 - Construção de 612 unidades habitacionais no km 03 da BR-235, no bairro Olaria. Investimento previsto de R$ 56 milhões.
4 - Melhorias habitacionais (reformas) de aproximadamente 735 casas consolidadas na Comunidade Recanto da Paz, no bairro Aeroporto. Investimento previsto de R$ 33 milhões.
Expediente
Reportagem e Edição: Will Rodriguez
Fotografia e Revisão: Pedro Ramos
Projeto Visual, Diagramação e Tecnologia: Goweb Tecnologia