Quando o sobrenatural atesta a qualidade de produções brasileiras
‘Cidade invisível’ e ‘Desalma’ têm enredos fascinantes; o primeiro, alvo de polêmica Blogs e Colunas | Levando a Série 19/02/2021 17h00 - Atualizado em 19/02/2021 17h09Uma das minhas séries preferidas se chama “Once upon a time”, expressão introdutória de contos de fadas e fábulas, equivalente ao nosso “Era uma vez...”. Nunca a sugeri aqui porque não mais a encontro nos serviços de streaming. Em resumo, a história se passa numa cidade criada pela Rainha Regina, alter ego da “Bruxa Má”, suprassumo da vilania que lança uma maldição pela qual todos os personagens da série se agregam naquele ambiente urbano, esquecidos de quem eram em sua vida anterior. Nessa salada mista, tem “de um tudo”: príncipes, princesas, vilões e vilãs dos clássicos, a turma do Peter Pan e da Alice de Lewis Carroll, passando pelo universo Disney, entre muitos outros. O consagrado diretor Carlos Saldanha embarcou em uma linha semelhante ao juntar no Rio de Janeiro, misturados à população, vários seres míticos do folclore brasileiro - ou mitologia, como preferir. A proposta agradou. A série criada por ele – Cidade invisível –, produção da Netflix, desde a estreia no início deste mês, consta entre as mais assistidas em pelo menos 40 países. Mas a proposta também desagradou; adiante vamos refletir sobre como alguns questionamentos sobre ela podem vir a ser muito proveitosos.
Tal sucesso pode ser atribuído a vários ingredientes, a começar do reconhecimento ao nome do brasileiro Carlos Saldanha, diretor de “Rio” e “Rio2”; dos segundo e terceiro “Era do Gelo” e de “O Touro Ferdinando” – todas animações internacionais de grande bilheteria. Voltando à série, o mais significativo, porém, foi ele fazer com que criaturas míticas da cultura brasileira, praticamente esquecidas desde “O Sítio do Picapau Amarelo” - o programa da Globo inspirado na obra do escritor Monteiro Lobato -, voltassem à vitrine, agora em escala mundial, a partir de releituras. Vale registrar que não se trata de uma aula sobre nosso folclore ou mitologia ou ainda cosmologia, termos aplicáveis ao sabor da identificação de cada um.
Ao construir um enredo com protagonismo de seres fabulosos, cujas origens mesclam o arcabouço espiritual de etnias indígenas originárias com crenças africanas e portuguesas, Saldanha estabelece uma diferença abissal, inegavelmente meritória, entre Cidade invisível e qualquer série de gênero policial. É assim que o Saci – de sugestivo nome Isac, ou seja, só foi mudada a ordem das letras – mora em uma ocupação na Lapa, bairro histórico e boêmio do Rio de Janeiro, onde também residem a Iara e a Cuca, duas belas mulheres aparentemente cumprindo a rotina comum à vida urbana. Destaque-se que a Cuca nada tem a ver com aquele jacaré em traje de espuma do Sítio do Picapau Amarelo, muito mais fofo do que amedrontador. Nessa “cidade invisível” que dá nome à série, se desenrolam eventos inexplicáveis racionalmente e que acabam levantando suspeitas no agente da Polícia Ambiental Eric Alves, interpretado com excelência pelo ator Marco Pigossi, já na sua terceira atuação em originais da Netflix. Eric investigava a morte de uma pessoa amada num incêndio florestal que desconfiou criminoso e, nesse meio tempo, se vê diante do corpo de um boto cor-de-rosa na areia da Praia do Flamengo. Perplexo com o inusitado dessa ocorrência, já que se trata de espécie de água doce, inclusive um dos símbolos da Amazônia - portanto jamais poderia ter chegado ali naturalmente –, Eric conecta os dois fatos, com base apenas em sua intuição. Carente de qualquer prova factível, mergulha numa busca obstinada por respostas. A partir desse ponto, a história vai num crescendo ininterrupto de sedução.Preciso explicar o motivo que me desvia da análise usual quanto às características dos personagens, e muito menos os associarei ao talentoso elenco de Cidade invisível, responsável, sem favor algum, pelo sucesso da série. Enquanto a assistia com meu marido, ficávamos especulando a quem cada pessoa correspondia nesse rico universo. Faz parte da diversão. Só entreguei o Saci porque ele é o mais óbvio.
A história gerou algumas queixas de representantes de etnias indígenas, para quem Cidade invisível não honrou devidamente a origem de grande parte dos seres míticos nessa provável primeira temporada. Provável porque Saldanha antecipou ter farto material – e disposição – para a continuidade da narrativa. A inexistência de personagens indígenas, a meu ver, é fruto de uma visível falta de diversidade na consultoria da série, posto que os incluir não criaria grande transtorno à produção. Ao contrário, a qualificaria pelo viés da legitimidade. Mas li uma crítica a citar essa lacuna, escrita por um “homem branco”, em que ele questiona a razão pela qual toda a trama se passa no Rio de Janeiro, ao invés de situada em algum estado do Norte, onde tais seres míticos sobrevivem com força inigualável no imaginário popular e na cosmologia indígena. Com todo respeito, não me fez nenhum sentido e explico o porquê. A vila caiçara da série, em cujo entorno há uma mata valorizada e protegida, está à mercê de uma construtora suprida de documentos que, em tese, legalizam sua posse daquela área. A ideia é nela implantar um “resort ecológico”. Lembram do incêndio na floresta que o policial ambiental Eric suspeitou ser criminoso? Não posso me estender, mas, como prega a sabedoria popular, “para bom entendedor, meia palavra basta”.
Cidade invisível marca a primeira experiência de Carlos Saldanha no campo da live action, ou seja, com atores e atrizes em carne e osso defronte as câmeras. A série, gravada ao longo de três meses em 2019, nas cidades de São Paulo e Ubatuba, no litoral norte daquele estado, além do Rio de Janeiro – um deleite particular para mim – supre plenamente a expectativa de quem conhece a trajetória do cineasta. “A gente consome tanta coisa de fora. Tem 'Deuses americanos', tem 'Thor', lendas gregas, 'Vikings'. Coisas que não têm nada a ver com a gente. A gente consome isso achando o máximo. Por que não achar o máximo o que nós temos?”, disse Saldanha ao colunista Rafael Braz, da Rede Gazeta.
Tiro o chapéu para o propósito, embora reconhecendo que, na intenção de ajudar, precisamos também ouvir os envolvidos, no caso os povos originários e suas críticas, que são válidas. Pessoalmente, amo constatar que a criação artística, em qualquer forma pela qual se expresse, prossegue como espaço libertário, de resistência ao obscurantismo que nutre a mediocridade e o retrocesso na evolução humana. Assim sendo, acho vantajoso o tanto de discussões construtivas que, intencionalmente ou não, Cidade invisível gerou, acabando por levar ao mundo um Brasil ignorado por grande parte dos brasileiros.
Passemos à segunda sugestão de hoje: Desalma, original Globoplay apresentado como drama sobrenatural. Ao envolver misticismo, injustiça e desejo de vingança, a série adota um tipo de enredo que costuma render boa audiência. E faz jus a isso.
Desalma foi criada e escrita pela romancista Ana Paula Maia, autora de vários livros, inclusive premiados, sob inspiração de uma viagem que ela fez à cidade paranaense de Prudentópolis, berço maior da cultura ucraniana no Brasil. “O leste europeu é extremamente místico. Peguei essa atmosfera muito rica culturalmente para uma história com elementos sobrenaturais. A ideia é trazer um costume diferente, que é lindo e está praticamente apagado, e que também faz parte do Brasil”, disse a escritora ao portal Universo da TV. Em outra entrevista, esta ao jornal O Globo, ela expõe: "‘Desalma’ não tem um protagonista, mas uma linha de frente. São basicamente as mães das famílias diretamente envolvidas na tragédia e nos mistérios”.
De fato, a trama é muito bem conduzida por um time de peso, marcado pela força de personagens femininas. A atriz Cássia Kis dá um show como a protagonista Haia Lachovicz, citada por toda a ficcional cidade de Brígida como “a bruxa”. Dotada de vidência – ao que tudo indica com pouca margem de erro –, ela lê cartas, é uma espécie de consultora para “senhoras de bem” da comunidade, que a procuram rotineira e discretamente. Em algumas cenas, essa relação vem à tona e expõe sua hipocrisia, já que Haia é tratada com nariz torcido pela sociedade local, salvo exceções. Muitos dos moradores têm algum grau de parentesco entre si, membros das três famílias de origem ucraniana que sustentam o enredo – Skavronski, Burko e Lachovicz. Não é um “Game of Thrones” da vida, mas eu mesma demorei um pouco a entender as conexões entre os sobrenomes.A “bruxa” Haia de Cássia Kis - seguramente em sua galeria de papeis inesquecíveis – já era conhecida de outra moradora, esta interpretada por Cláudia Abreu, também em excelente atuação: Ignes, uma mãe em desespero pela situação sobrenatural rondando seu filho criança. E é assim que o caminho delas volta a se cruzar. Não dá para dizer muito, o spoiler seria inevitável, mas se torna uma atração à parte testemunhar a grandeza do trabalho de ambas – que demoram a contracenar e é fascinante quando isso enfim ocorre. Talento não tem idade, mas, no caso de Desalma, cujo elenco é repleto de jovens, a experiência das duas atrizes imprime às respectivas personagens um diferencial concreto. O que une Haia e Ignes são eventos misteriosos que se desdobram em Brígida pouco antes da Ivana Kupala, uma festa ucraniana que, na série, voltaria a acontecer após 30 anos suspensa. Naquela noite do ano de 1988, uma tragédia marcou o evento e, três décadas depois, a comunidade decide pelo renascimento daquela tradição. O trio de ótimas protagonistas se completa com Giovana – muito bem executada pela atriz Maria Ribeiro –, cujo marido, Roman, nasceu e cresceu em Brígida, mas ela mesma jamais teve qualquer relação com a cidade. Novamente, paro por aqui.
A celebração em torno da qual se desenrola a história é real. O Grupo Folclórico Ucraniano Poltava a explica com muito mais categoria do que eu, nessa postagem que encontrei numa rede social, publicada em 2014, portanto muito anterior à Desalma, gravada em 2019: “Esta é a noite em que ocorre o solstício de verão no Hemisfério Norte, os dias começam a ficar mais curtos e as noites mais longas. Na Ucrânia pré-cristã, o festival era realmente um rito de fertilidade que assegurava uma boa colheita. Com a chegada do Cristianismo na Ucrânia, a Igreja tentou suprimir o festival, mas não obteve sucesso. Assim eles fizeram o que normalmente faziam: combinaram o festival do deus pagão Kupalo com o banquete da natividade de São João Batista e a festa passou a ser chamada de "Ivana Kupala". Durante o dia, os rapazes e as moças confeccionavam os bonecos de Marena e Kupalo. Na noite de Ivana Kupala, os jovens se reuniam fora da aldeia, próximo de um riacho ou de uma lagoa, onde construíam fogueiras, traziam para perto do fogo os bonecos e o ícone de São João Batista. Aproveitavam também para queimar ervas especiais abençoadas, para atrair sorte no amor e na colheita. As meninas cantavam canções especiais, com muitas referências ao amor e ao matrimônio. Atiravam guirlandas de flor (vinotchok) na água ou na fogueira e pediam para encontrar um grande amor. Os rapazes faziam o mesmo, porém jogavam pequenas cruzes de gravetos. Para atrair a sorte e espantar o azar meninos e meninas pulavam a fogueira”.
A mim parece uma celebração animadíssima, cujo teor simbólico externa alegria sem jugo moralista. Porém, para suprir o horror sobrenatural de Desalma – que inclui transmigração de almas –, Ivana Kupala e a floresta onde tem lugar o evento se revestem de mistérios sombrios e de temores que vão se alastrando por Brígida.Os cenários, a propósito, a iluminação e os figurinos fazem da série um produto de excelência na dramaturgia brasileira, sob a batuta do diretor artístico Carlos Manga Jr. Não por acaso, exibida no 70º Festival de Berlim em fevereiro de 2020, Desalma (Unsoul, no mercado externo) surpreendeu a plateia estrangeira, angariando críticas positivas. A atriz Maria Ribeiro estava lá e fez uma observação muito apropriada: tudo na série destoa por completo do perfil tropical usualmente característico de produções brasileiras. Vai em sentido oposto. Os personagens aparecem trajando camadas de roupas – algumas mulheres com uns sobretudos lindos -, imersos num clima frio e soturno. Foram seis semanas de gravações em 36 sets nos três estados da região Sul, dos quais 16 numa propriedade em São Francisco de Paula, na serra gaúcha.
Mesmo levando-se em consideração os questionamentos, em especial sobre Cidade invisível, as duas séries atestam a pujança da dramaturgia brasileira e o poder do streaming como salvaguarda de sua sobrevivência, desafio crescente para o setor. Há luz no fim do túnel, ainda bem.
Por fim, deixo à reflexão uma frase de William Shakespeare em “Hamlet”, errônea e frequentemente citada como sendo bíblica: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.
Para maratonar:
Cidade invisível – sete episódios, disponível na Netflix, ainda sem confirmação de sua provável continuidade;
Desalma – dez episódios, disponível na Globoplay, que já confirmou a segunda temporada.
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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