Maid: uma história de superação emblemática do mundo real - infelizmente
Minissérie baseada em fatos gera comoção, mas também esperança numa sociedade melhor Blogs e Colunas | Levando a Série 29/10/2021 16h00Mulheres que sofrem abusos por parte de seus companheiros não raro são julgadas, até por pessoas próximas, se permanecem na relação, por mais tóxica que seja. Nesse sentido, a minissérie Maid (Criada) presta um excelente serviço ao promover entendimento e empatia quanto a uma barbárie que, no Brasil, vira notícia diariamente: a violência doméstica.
Maid é baseada nos fatos narrados em autobiografia pela norte-americana Stephanie Land - “Criada: Trabalho Duro, Baixo Pagamento e uma Vontade de Mãe de Sobreviver”, no original “Maid: Hard Work, Low Pay and a Mother’s Will to Survive”. A adaptação para a minissérie original Netflix esteve a cargo da escritora e produtora Molly Smith Metzler, cuja trajetória inclui Orange Is the New Black, recomendada aqui.
Das páginas do livro para a telinha, houve alguma licença poética, digamos assim, mas a síntese do enredo se mantém meritória, por várias razões. Uma das mais proeminentes é a superação sofrida de desafios contínuos por parte da personagem principal, Alex, papel cumprido à perfeição pela atriz Margaret Qualley.
A história começa com Alex aos 25 anos, casada com o barman Sean (Nick Robinson), pouco mais velho, pais da pequena Maddy, uma fofura de dois anos lindamente interpretada pelo talento precoce Rylea Nevaeh Whittet. Um dia, o casal discute e Sean, bêbado, encerra o assunto desferindo um soco na parede, ao lado de onde está parada a esposa. O buraco aberto no reboco traduz a clara ameaça de que o próximo alvo de agressão talvez seja a cara dela. É a gota d´água numa rotina de abuso emocional. A moça cujo sonho de se tornar escritora foi abandonado junto com uma vaga na universidade, em prol de dar conta como mãe, espera Sean dormir e foge com Maddy da casa modesta onde até então moravam os três. Alex não tem amigos para chamar de seus – todos são também do círculo de Sean -, e tampouco pode esperar qualquer ajuda da mãe, Paula, em ótima atuação da sempre bela Andie MacDowell que, curiosamente, também é mãe da atriz a interpretar sua filha em Maid. Ocorre que Paula sofre há décadas com transtornos mentais nunca devidamente diagnosticados – a melhor aposta de alguns é bipolaridade -, e portanto jamais tratados sob mínimo parâmetro de eficiência.Para piorar, Alex foge com uns trocados e o público vai conferindo, na tela, o cálculo da diminuição de seu dinheiro, conforme o custo de cada coisa que a moça precisa adquirir – combustível e alimentos, por exemplo. Assumo que esse aspecto foi um dos que mais mexeu comigo: a total falta de recursos para garantir tamanha virada de caminho. Sou fã de simplicidade, mas o que a protagonista enfrenta é absoluta escassez. Sua decisão de proteger a filha dos arroubos raivosos do marido se operou num rompante de desespero, sem qualquer planejamento ou provisão.
No decorrer dos dez episódios da minissérie, Alex vai expondo ao público sofrimento, uma disposição incansável em dar a volta por cima e ainda sobra capacidade para se mostrar bondosa e empática. Ela arruma trabalho como faxineira numa empresa que agencia esse tipo de profissional – Value Maids –, mas a precariedade da relação com a chefe, Yolanda (Tracy Vilar), resulta que muito pouco chegue de fato a seu bolso. Alex ganha por hora trabalhada, mas banca o combustível para dirigir até as casas de clientes e o material de limpeza a ser utilizado. Se houver qualquer problema, como a contratante se esquecer que era dia de faxina, a moça não recebe qualquer pagamento, ou seja, arca com os custos assumindo todos os riscos. Outra faceta da história que me chamou atenção – essa menos dramática – é como Alex limpa mansões com todo capricho, no período de três ou quatro horas. Se alguém souber um jeito não ficcional de fazer isso, por favor, me ensine. A dona de uma dessas residências enormes e luxuosas é a advogada Regina, cliente de nariz empinado e a princípio desprovida de grandeza. Mas, como no mundo real, as pessoas podem evoluir, se assim quiserem, num movimento espontâneo ou por força de agruras inesperadas, o caso em questão. Enquanto se esfalfa nessas faxinas de qualidade e rapidez beirando o miraculoso, a jovem mãe enfrenta sucessivos percalços, familiares para quem conhece a pobreza e a invisibilidade social associada a ela, lá nos Estados Unidos, como aqui. Candidatar-se a auxílios governamentais demanda trilhar uma via-crúcis, soterrada pela burocracia de comprovações e de múltiplos formulários, o que requer tempo e dinheiro para deslocamentos. Alex não dispõe de nenhum dos dois, se não trabalhar, a filha passa por privações inaceitáveis.Um de seus raros períodos de relativo fôlego é logo no início, quando encontra apoio e moradia num abrigo para vítimas de violência doméstica. Lá estão outras mulheres, algumas com filhos ou filhas que, a exemplo de Alex, tentam afastar do perigo a dividir os lares com elas. A gerente da casa, Denise (BJ Harrison), dá uma bela lição à nova integrante do grupo, que faz amizade com outra na mesma situação e assiste depois, horrorizada e surpresa, o retorno dela ao marido capaz de a esganar. Generosa e sábia, Denise lembra a Alex que não é fácil tomar a decisão definitiva de romper com esse ciclo perverso e que ela própria só conseguiu se desvencilhar da relação tóxica em que vivia na quinta tentativa. A bondosa senhora adverte ainda, se referindo a Sean: “Antes de morder, ele ladra. Antes de te bater, o murro é na parede“. Na vida real, ficar atenta aos primeiros sinais pode diminuir a triste estatística brasileira dos feminicídios.
A propósito, uma das críticas mais contundentes que se observa em Maid diz respeito ao abandono judicial experimentado por essas mulheres. Como Alex e a filha Maddy nunca foram agredidas fisicamente por Sean, há absurda e generalizada condescendência em relação a ele, inclusive por parte de Paula, a mãe da moça e outra vítima de abusos. É como se violência psicológica fosse um mal menor, como se não destruísse mulheres e crianças por um estado de temor e estresse ininterrupto, além do massacre deliberado à autoestima.Numa emocionada análise a respeito de Maid, a gloriosa escritora gaúcha Martha Medeiros, cronista de primeira linha, diz: “É sobre feridas que não ficam visíveis através de hematomas. Que são abertas na alma e sulcadas lentamente, dia após dia, sem chance de cicatrização, e tão triviais se tornam que a gente acaba se acostumando, achando que é assim mesmo, faz parte da vida”.
Não faz. Ninguém merece violência física nem psicológica, pior ainda num ambiente onde só deveria existir amor, respeito e paz. Em Maid, o marido e o pai de Alex, Hank (Billy Burke), botam seus graves erros e maldades na conta do alcoolismo. Dependência de álcool é doença e, como tal, precisa de tratamento, um processo notoriamente árduo e cuja manutenção requer empenho incessante. Nada justifica, porém, que despejem seus problemas nas respectivas famílias, em forma de agressões cujos efeitos costumam ser indeléveis - isso quando as vítimas sobrevivem.Voltando a Martha Medeiros, ela diz sobre Maid: “O que importa é que é urgente assisti-la, ainda mais se você é mulher”. Assino embaixo.
Por fim, deixo à reflexão uma frase atribuída ao genial escritor Isaac Asimov, de quem sou fã: “A violência é o último refúgio do incompetente”.
PS – Para denunciar anonimamente casos de violência doméstica, ligue 180. Quem se omite ajuda a proteger os criminosos.
Para maratonar:
Maid – minissérie completa de dez episódios, disponível na Netflix.
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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