Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima
Duas séries, duas protagonistas poderosas e seus exemplos de superação Blogs e Colunas | Levando a Série 03/10/2020 13h00 - Atualizado em 03/10/2020 13h06Circunstâncias adversas podem e devem despertar algo benéfico. Do contrário, só serviriam para causar sofrimento – e quem vê o copo meio cheio, meu caso, espera que sementes brotem em pedras. Foi exatamente o caminho das duas protagonistas das séries de hoje – Maria Luiza, em “Coisa mais linda”, da Netflix; e Midge Maisel, em “The Marvelous Mrs. Maisel” (A maravilhosa Sra. Maisel), da Amazon Prime Vídeo. Ambas as histórias se passam na década de 1950; a primeira no Rio de Janeiro; a segunda em Nova Iorque, mas outros aspectos lhes conferem similaridade.
“Coisa mais linda” é a quarta série produzida no Brasil com assinatura da Netflix, depois de 3%, O Mecanismo e Samantha!. Nela, Maria Luiza é uma mulher casada, de família paulistana conservadora e bem dotada de recursos financeiros. Seguindo a cartilha de então, ela cumpre o papel de mãe/dona de casa sem maiores dramas. Isso até que seu marido, Pedro (Kiko Bertholini), financiado pelo sogro, se muda para o Rio de Janeiro com a proposta de montar na capital brasileira um restaurante. A transformação da recatada Malu começa quando ela vai procurar o marido e verifica que nada havia sido feito no espaço adquirido para o negócio. Pior: ele sumiu e, junto, todo o dinheiro. Abandonada à própria sorte pela primeira vez na vida, já que migrara de um pai provedor a um marido idem, Malu absorve o impacto do choque e resolve dar a volta por cima. Nesse processo, descobre a si mesma. Tudo ocorre sob embalo da Bossa Nova, movimento cultural no nascedouro e que funciona tanto como pano de fundo, quanto como uma bela trilha sonora, amparada pelo músico Chico, papel do ator e cantor Leandro Lima. Vem daí seu título – Coisa mais linda -, referência direta à “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Morais. A criação da série é de Giuliano Cedroni e Heather Roth – ambos brasileiros, apesar de seus nomes.
Seguramente, já ficou clara uma veia feminista na história, ao expor as agruras de mulheres lutando para ter direitos iguais aos dos homens e por um mínimo de respeito. O panorama fica mais nítido por intermédio das coadjuvantes – se é que procede as classificar assim. Malu, interpretada com grande talento pela atriz Maria Casadevall, reencontra no Rio de Janeiro uma amiga de infância, Ligia (Fernanda Vasconcellos), cujo sonho de ser cantora é soterrado pelo marido, que a trata como um bibelô adequado às próprias ambições no território da política. O quarteto das “poderosas” vai se fechando com a personagem Adélia, uma empregada doméstica negra que batalha para sustentar sua filha – enquanto ainda precisa lidar com o racismo -, gloriosamente interpretada por Pathy Dejesus, também modelo de carreira muito bem sucedida. E se completa com a escritora Thereza, libertária em honesto arranjo com o marido, num papel perfeitamente conduzido por Mel Lisboa. Sobre ela, uma curiosidade: a despeito de sua sólida trajetória nos palcos e nas telas, continua sendo lembrada principalmente como protagonista da minissérie global “Presença de Anita”, de 2001.
Apesar do rótulo de feminista em várias análises, “Coisa mais linda” não apresenta um engajamento forçado a essa justa causa, penso que se trata de uma ótima história e ponto. O contexto é de fato o da época e não há nada passível de questionamento. “O antagonismo da série é o preconceito, não os homens”, disse a atriz Fernanda Vasconcellos à Folha de S. Paulo. “Nunca deixem os seus maridos controlarem o seu dinheiro, muito menos as suas vidas”, diz a personagem Malu às mulheres que testemunham a estreia de seu ambicioso projeto, concretizado. “A gente não percebe o quanto é corajosa até precisar ser”, vaticina sua amiga Thereza, num diálogo particular entre ambas. Assino embaixo.
Passemos a Miriam “Midge” Maisel (Rachel Brosnahan), protagonista da segunda série que me ocorreu conectar com a brasileira “Coisa mais linda”. Da mesma forma que a paulistana Malu, Midge vinha de uma família conservadora, e cumpria o percurso esperado para as mulheres à época – mas, no caso dela, nem tanto. Já na cerimônia do casamento com o homem que verdadeiramente amava, Joel (Michael Zegen), a novaiorquina deixa explícita sua propensão a ser espirituosa, frequentemente adentrando o campo da inconveniência. Mas é esse perfil que lhe abre um mundo de possibilidades, quando seu marido a deixa para ficar com a secretária. Ao expor o naufrágio matrimonial para os pais, com quem vai morar levando seus dois filhos, Midge ouve deles a pergunta: “o que você fez?”. Alguém surpreso? O casal é interpretado por dois velhos conhecidos dos apreciadores de séries – o brilhante Tony Shalhoub, sucesso como o detetive Monk, que comentei na coluna passada, e Marin Hinkle, a Judith de Two and a half men (Dois homens e meio). Ambos os personagens ilustram à perfeição o triste propósito existencial de manter aparências a todo custo.
A história daquela recém-separada vai ganhando novos rumos a partir do encontro com a gerente de um bar, Susie, papel que rendeu à atriz Alex Borstein vários prêmios e indicações. Ela percebe as potencialidades daquele talento nato para o stand-up comedy – que Midge libera sob circunstâncias curiosas - e se torna sua agente. A química entre ambas é ótima e fica difícil saber qual das duas perverte em maior dimensão os códigos sociais vigentes. E olha que Susie se veste com trajes masculinos e age rotineiramente com brutal objetividade. O fato é que, juntas, elas lutam para romper barreiras em um território artístico dominado pelos homens.
Criada por Amy Sherman-Palladino, que assina também o sucesso Gilmore Girls, “The Marvelous Mrs. Maisel” já teve confirmação da quarta temporada pela Amazon Prime Video. Não surpreende diante da montanha de prêmios importantes que recebe desde sua estreia, em 2017. Só Emmy foram oito ganhos no ano seguinte, entre os quais nas categorias Melhor Atriz Principal para Rachel Brosnahan; Atriz Coadjuvante, para Alex Borstein; Roteiro, Direção e, a cereja do bolo, Melhor Série de Comédia.Por fim, um ótimo resumo das histórias, nas palavras de um dos meus filósofos favoritos, Friedrich Nietzsche: “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte”.
PS – O título das sugestões desta coluna foi extraído de um sucesso do compositor Paulo Vanzolini – “Volta por cima” -, gravado por nomes como Beth Carvalho, Maria Bethânia e Elza Soares.
Para maratonar:
Coisa mais linda – duas temporadas completas, total de 13 episódios, disponível na Netflix;
A maravilhosa Sra. Maisel – três temporadas, total de 28 episódios, disponível na Amazon Prime Vídeo, que já confirmou a quarta.
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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