Humor e amor caminham juntos em duas pérolas do surreal | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

Humor e amor caminham juntos em duas pérolas do surreal
“Brooklyn-99” e “Psych” são incoerentes ao extremo... e muito divertidas
Blogs e Colunas | Levando a Série 09/10/2020 13h00

Tenho um bom amigo que já me disse ser incapaz de achar graça em comédias – sejam filmes ou séries. Sou o inverso. Presumo que minha criança interior nunca foi embora e chego ao ápice da bobeira assistindo a algumas histórias. Isso inclui gargalhadas escandalosas e, não raro, um ataque de riso, daqueles gloriosamente fora do controle e capazes de “desopilar o fígado”, segundo a expressão popular.  As duas recomendações a seguir me proporcionam essa reação, e funcionam em especial para quem se desprende da expectativa de coerência – o que já não procede sobre qualquer ficção, convenhamos.  Ambas são incoerentes ao extremo e, a meu ver, muito divertidas. 

A primeira está disponível na Netflix – “Brooklyn-99”, nome de uma fictícia delegacia onde tudo pode acontecer, nesse bairro real de Nova York. Comecei a assistir sem grande interesse, movida pela insistência de duas das minhas filhas. As estripulias e trejeitos do detetive Jake Peralta (Andy Samberg) me soaram ridículos a princípio, até eu verificar o óbvio, mea culpa. O fio condutor da narrativa reside no surreal, maluquice pura e simples.  A partir dessa compreensão, relaxei e usufrui com enorme prazer do nonsense que caracteriza a série. 

Além dessa qualidade, a equipe da delegacia Brooklyn-99 reiteradamente se situa como uma família – a meu ver, da melhor estirpe. Inexiste fingimento, hipocrisia; ao contrário, a cumplicidade, o amor e o respeito dominantes conferem um caráter evolutivo à série, perceptível para quem está conectado a tais escolhas. Exemplo: o capitão Raymond Holt, papel do ator Andre Braugher – inesquecível para mim como o anjo Cassiel no filme “Cidade dos Anjos” –, comanda a delegacia Brooklyn-99, mas, para chegar a esse quase topo da carreira policial, teve que ultrapassar muitos preconceitos. Não posso dizer do que se trata sob pena de mandar spoiler, mas o ponto aqui é que seus subalternos o acatam como líder sem pestanejar, já que pequenez não encontra nenhuma guarida na “família B-99”. 

Humor e amor andam juntos sempre nessa pirada delegacia, o que faz de Brooklyn-99 muito além de uma série de investigação policial – o trabalho contextualiza o relacionamento daquela autoproclamada família, sem desdenhar a capacidade da equipe em elucidar crimes, ainda que ao fim de sucessivos desatinos. O caricato une os personagens, ao mesmo tempo em que os distingue. A detetive Rosa Diaz (Stephanie Beatriz) está sempre rosnando, enquanto sua colega Amy Santiago (Melissa Fumero), perfeccionista e gentil, se esmera em impressionar o capitão Holt,  enigmático e muito rígido. A assistente dele, Gina Linetti (Chelsea Peretti), usa o próprio carisma para resolver complexas questões, só não faz o que seria de sua alçada profissional naquele cargo. Há ainda o investigador Charles Boyle (Joe Lo Truglio), fã número um do protagonista Jake Peralta, admiração que o impele a ser tão bobo quanto o ídolo. Um dos meus preferidos é o sargento Terry Jeffords, outra marcante atuação do queridíssimo ator de mesmo prenome, Terry Crews, cuja fama ganhou o mundo como o pai do Chris em “Todo mundo odeia o Chris”.

Brooklyn-99 foi criada por Michael Schur e Dan Goor, parceria nascida anteriormente na aclamada série Parks and Recreation (Parques e recreação), disponível na Amazon. Uma das curiosidades que circula pela internet é que o potencial elenco de B-99 foi procurado para discutir o projeto antes de sequer estar delineado um roteiro. Mas os antecedentes da dupla de produtores, escritores e diretores foram capazes de seduzir prontamente os candidatos aos papeis.  Michael Schur é também o criador da encantadora  The good place (O bom lugar), já comentada nessa coluna.  

A segunda opção a unir humor e amor é Psych, esta completa na Amazon Prime Vídeo, que não traduz títulos de séries, mas seria algo como “Vidente”, numa aproximação de sentido. Cada episódio – com raras exceções – inicia com uma cena do garoto Shawn Spencer sendo claramente encaminhado pelo pai a seguir a carreira do próprio como detetive de polícia, o célebre Henry Spencer (Corbin Bernsen). Esses flashbacks incluem o inseparável amigo de Shawn, Burton Guster, uma criança a lidar com admiração e afeto de um lado e, no oposto, com as broncas que sobravam para ele, por tabela. Ciente da incrível capacidade de observação do filho Shawn, Henry o desafia sistematicamente, alimentando aquele dom nato, porém de forma um tanto impositiva, quadro que os levou a uma distância emocional cuja resolução é complicada para ambos. 

 

Corta para Shawn adulto – interpretado pelo ator James Roday –, que aponta autores de crimes ao Departamento de Polícia de Santa Barbara, na California, por telefone, só de acompanhar o noticiário e usando sua percepção extraordinária. Até que um dia ele se torna suspeito justamente pela quantidade de orientações acertadas que, ao longo do tempo, vieram à tona. Sob interrogatório, precisando explicar em que galáxia se amparavam suas intervenções não solicitadas, o desvairado Shawn Spencer embarca em uma fraude. Sem qualquer peso na consciência, para se livrar do problema, ele se apresenta como vidente, detentor de poderes mediúnicos. Abre a empresa “Psych” e acaba prestando serviços de consultoria ao departamento de polícia onde o pai estabeleceu notável carreira. 

Como em Brooklyn-99, Psych tem humor como alicerce e amor no subtexto. A investigação policial é vitrine e justificativa para Shawn Spencer liberar suas performances teatrais exageradas, em átimos de suposta vidência. Isso sempre acompanhado do sobrevivente melhor amigo e seu sócio na agência de investigação: Burton Guster, como adulto numa interpretação fenomenal de Dulé Hill. Sobre ele, um destaque: a absoluta falta de semelhança de Guster com um personagem de Hill na série Suits – o circunspecto advogado Alex Williams –, apesar de idênticos fisicamente, dá a medida do talento desse ator.  A amizade entre Shawn e Gus é um ingrediente valoroso de Psych, a tudo supera, se mantém firme e forte, embora o primeiro abuse demais da paciência do segundo. Justiça seja feita, ambos são “crianções”. 

Na delegacia, outra vez lembrando Brooklyn-99, o clima também é de muita camaradagem. A nota destoante é o detetive-chefe Carlton Lessiter (Timothy Omundson), cujas amargura e autoestima em baixa usualmente se expressam em inveja e grosseria – ainda que ele não deva ser classificado como má pessoa. Sua parceira profissional, a detetive Juliet O'Hara (Maggie Lawson), é tão bela quanto competente; mesmo caso de Karen Vick (Kirsten Nelson), a manda-chuva do Departamento de Polícia de Santa Barbara. As duas são mais rígidas externamente do que no íntimo, sobretudo a chefona, mas fica claro que adotam essa postura para não dar margem a desrespeitos, num universo de predominância masculina.  

Por fim, deixo à reflexão um pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein: “Humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo”. 

Para maratonar:
Brooklyn-99 – seis temporadas, total de 130 episódios, ainda em andamento e disponível na Netflix;

Psych – oito temporadas, total de 122 episódios, completa e disponível na Amazon Prime Vídeo. 

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