‘Filmes que marcam época’ é uma dádiva da telinha aos fãs da telona
Condução inteligente e divertida torna a série documental ainda mais valorosa Blogs e Colunas | Levando a Série 14/11/2021 18h18 - Atualizado em 14/11/2021 19h02(Começo com um desafio: você reconhece, pelas quatro ilustrações acima, a que filmes se referem? A resposta estará no final da coluna)
Para quem é apaixonado por cinema, uma série documental da Netflix proporciona uma imersão repleta de méritos na chamada “sétima arte”: Filmes que marcam época (“The movies that made us”, no título original da plataforma). Afirmo sem pestanejar que nunca assisti a um trabalho dessa natureza com tamanha qualidade na concepção, executada perfeitamente por intermédio de uma primorosa edição, sob a batuta de seu criador, o produtor e diretor norte-americano Brian Volk-Weiss. O estilo jocoso e um tanto sarcástico dos dois narradores (Donald Ian Black, na primeira temporada; Danny Wallace da segunda em diante) garantem a cada episódio um fluxo de puro deleite.
Esse viés criativo e de inteligência pulsante faz de Filmes que marcam época um manancial de curiosidades e risadas. Além de adentrar nos impactos comportamentais advindos dos sucessos cinematográficos em foco, a série contribui significativamente para que o público perceba a dimensão dos desafios enfrentados pela indústria audiovisual, que gera centenas de milhares de empregos nos países desenvolvidos.
Como cada episódio aborda um filme e se esgota nele, é possível assistir os 16 distribuidos por três temporadas aleatoriamente, livre de uma ordem sequencial. Assim, fui direto para um trabalho que situo no patamar de obra-prima: “Forrest Gump”, nome do protagonista interpretado pelo glorioso Tom Hanks com o habitual brilhantismo. Eis algumas das curiosidades trazidas à baila: o filme inicialmente seria baseado no romance homônimo, lançado em 1986, pelo escritor Winston Groom, a quem foi encomendada a primeira versão de roteiro para a telona. A história original do livro era, porém, muito diferente e a adaptação de seu autor foi considerada “uma bagunça”, razão pela qual a Warner Bros., detentora dos direitos de filmagem, a deixou jogada em uma caixa por um ano.
A Warner pulou fora do projeto definitivamente após o sucesso de “Rain Man”, em 1988, protagonizado por Dustin Hoffman, Melhor Ator no Oscar no papel de um homem que se inseria no espectro autista. A suposição do estúdio foi que não haveria interesse por um filme cujo personagem principal, outra vez, seria visto à margem do conceito de “normalidade”. No entanto, para sorte do público, um dos executivos da Warner, Kevin Jones, aceitou um cargo na Paramount e levou na bagagem o roteiro de “Forrest Gump”, a essa altura já reescrito.
A primeira coisa que a Paramount fez foi cortar 10 milhões de dólares de um orçamento já modesto, 55 milhões. O estúdio propôs a retirada de todo o enredo referente à Guerra do Vietnã, quando Forrest salva a vida do tenente de seu batalhão, Dan Taylor, interpretado por Gary Sinise. Nesse ponto, Tom Hanks e o diretor do filme, Robert Zemeckis, abriram mão de significativa parcela dos respectivos honorários, suprindo quase por completo os US$ 10 milhões que a Paramount decidira economizar. Sem esse propósito de ambos, jamais existiria o efeito do tenente Dan Taylor, que perde no ataque as duas pernas abaixo dos joelhos, sobre os sobreviventes reais de situações semelhantes. O ator Gary Sinise embarcou numa missão valorosa, impulsionada pelo sucesso de seu personagem, e fundou uma ONG que auxilia veteranos de guerra a lidar com as perdas físicas e as dores emocionais oriundas da experiência desumana em um campo de batalha.
Algumas falas do filme se cravaram na história do cinema. Exemplos: o “run, Forrest, run” (corra, Forrest, corra) gritado por Jenny, a paixão do personagem desde a infância, diante de meninos que pretendiam bater no amigo. Quando adulta, ela é interpretada pela bela Robin Wright. O reencontro da personagem com um incontrolável Forrest, que a descobre na multidão à frente dele, após um longo período de afastamento entre ambos, é outra cena impactante lembrada em Filmes que marcam época. No elenco, quem também engrandece a obra é a experiente Sally Field, a Senhora Gump, mãe do homem com pureza de menino.
“Forrest Gump” arrecadou mais de US$ 677 milhões em todo o mundo, tornando-se o segundo filme de maior bilheteria de 1994, atrás apenas da animação “O Rei Leão”. No Oscar, foi vitorioso nas categorias Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator para Tom Hanks, Melhor Roteiro Adaptado, Melhores Efeitos Visuais e Melhor Edição.
A Warner Bros., que dispensou a história, deve ter pensado: “big, huge mistake” (grande, enorme erro). Foi o que disse a moça aí embaixo, a prostituta Vivian, ao retornar cheia de compras a uma loja chique cujas vendedoras a humilharam, em reprovação a seus trajes de profissional do sexo. É uma cena inesquecível de outra obra abordada em Filmes que marcam época: “Uma Linda Mulher” (Pretty Woman), de 1990.
A narração singular da série documental exprime de forma muito divertida a gigantesca estupefação da indústria hollywoodiana diante do estúdio a bancar o filme, o Touchstone Pictures, braço da The Walt Disney Company. Causou frisson uma empresa da Disney abraçar a história de um casal estranhíssimo a seu tradicional arco de interesse – não pelo milionário Edward, mas pelo par romântico dele, uma prostituta. Ocorre que a proposta da Touchstone era ampliar o público da Disney, até então exclusivamente infantil, apostando na conquista de jovens e adultos. “Uma Linda Mulher” caiu como uma luva. De quebra, catapultou ao estrelato uma atriz de 21 anos praticamente desconhecida: Julia Roberts.
Com o parceiro protagonista Richard Gere, ele já famoso, o casal levou o “conto de fadas moderno” a um sucesso tão estrondoso que surpreendeu inclusive a equipe. O que muitos críticos avaliam, ainda hoje, como a melhor comédia romântica de todos os tempos, rendeu a segunda maior bilheteria em 1990 nos EUA e a quarta mundialmente.
O roteiro inicial foi alterado por completo pelo diretor Garry Marshall. O enredo, anteriormente sombrio e denso, apresentava Vivian como viciada em drogas, aspecto atenuado e transferido para sua amiga e colega prostituta Kit de Luca (Laura San Giacomo). Na foto abaixo, ela aparece com um dos meus personagens favoritos, o gerente Barnard Thompson, do hotel onde o milionário Edward se hospeda – agora tendo a companhia da moça que apresenta como sua sobrinha, obviamente sem expectativa de acreditarem. Pela interpretação sensível do ator Hector Elizondo, que se recobre de empatia, o coadjuvante “Barney” – como Vivian o chama – ganhou estofo de protagonista.
Do lado vilão, o ator Jason Alexander suscitou entre desprezo e ódio como o ambicioso advogado Philip Stuckey. Saiu-se, portanto, muito bem, ainda mais tendo em vista que já começara a atuar como um dos membros do quarteto hilariante na ótima série de comédia Seinfeld, que saiu da Amazon Prime para a Netflix.
Ao contrário de “Uma Linda Mulher”, não foi surpresa para ninguém o êxito colossal obtido por “Parque dos Dinossauros” (Jurassic Park), de 1993, também esmiuçado em Filmes que marcam época. Primeiro, porque se baseou no livro homônimo do Midas literário Michael Crichton; segundo, porque os direitos de imagem sobre a obra, antes mesmo de seu lançamento, foram comprados por outro Midas, o diretor Steven Spielberg, em parceria com a Universal.
Parte do elenco protagonista foi escolhida pessoalmente por Spielberg, a exemplo de Sam Neill no papel do paleontólogo Alan Grant; Laura Dern, como a paleobotânica Ellen Sattler, e Jeff Goldblum, como o matemático Ian Malcolm, estudioso da Teoria do Caos. Deste último vem uma das falas mais emblemáticas do “clima” de “Parque dos Dinossauros”. O investidor-mor da futura pretensa atração turística em torno da qual gravita a história – John Hammond (Richard Attenborough) – argumenta: "Todos os principais parques temáticos apresentam atrasos. Quando eles abriram a Disneylândia em 1956, nada funcionava”. Ao que Ian Malcolm retruca: “Sim, mas, John, se Piratas do Caribe quebrar, os piratas não comem os turistas”.
A série mostra a agonia dos produtores diante de um desafio visceral para o cumprimento de prazos e, mais ainda, para a essência da história: dinossauros convincentes. Um divisor de águas no campo dos efeitos especiais, “Jurassic Park” aliou a animatrônica, utilizada em vários filmes antes dele, a uma técnica inédita, que “mudou a forma de se fazer cinema”.
A parte de computação gráfica ficou a cargo da Industrial Light & Magic (ILM), à época um braço da Lucasfilm, fundada pelo produtor e diretor George Lucas, responsável por sucessos como as sagas Star Wars e Indiana Jones, entre outros de igual envergadura. Mas ninguém estava satisfeito com o movimento dos dinossauros, em especial o do T-Rex, que precisava correr em disparada numa cena icônica. Enquanto os atores e atrizes avançavam nas gravações, os personagens extintos empacavam o cronograma. A solução veio do talento e da busca obstinada de um profissional já respeitado por seu trabalho na ILM, Steve Williams, que fez digitalmente os ossos do tiranossauro de maneira a obter “dados tridimensionais”. Não sei explicar como isso funcionou, mas fica claro na série que tal estratégia não só resolveu um problema de potencial catastrófico para o filme, como cravou no currículo de Williams a autoria de uma técnica inovadora.
“Jurassic Park” arrecadou quase US$ 1 bilhão mundialmente, tornando-se o filme de maior bilheteria da história até o lançamento de “Titanic”, em 1997. Compreensível e lógico que dele derivassem outras quatro produções; a quinta de estreia prevista para 2022.
Por fim, deixo uma citação de ninguém menos que o multifacetado gênio Orson Welles: “O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho”.
PS – Resposta do desafio: “Esqueceram de Mim” (Home Alone); “Os Caça-Fantasmas” (Ghostbusters); “Duro de Matar” (Die Hard) e “Ritmo Quente” (Dirty Dancing). Todos eles são também enfocados, dentre os 16 episódios de Filmes que marcam época, disponível na Netflix.
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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