Duas dicas para entrar sem pressa no fabuloso universo das séries
“O Gambito da Rainha” e “Amor Moderno” proporcionam imersões rápidas e adoráveis Blogs e Colunas | Levando a Série 18/12/2020 16h00Cada publicação desta coluna é enviada para uma rede de amigos(as) e familiares, junto com um pedido imutável: “quem gostar, por favor, compartilhe”. Em retorno, alguns me dizem que nunca assistiram a qualquer série, de modo a expor educadamente sua completa falta de interesse no tema. Hoje a proposta é sugerir bons começos para os dispostos a um vislumbre nos potenciais desse nicho do entretenimento capaz de suprir todos os gostos, sem exagero.
Vou pegar logo pesado, recomendando uma minissérie de ficção que vem a ser a de maior audiência na história da Netflix, isso desde sua estreia no fim de outubro: O Gambito da Rainha. Baseado no livro homônimo do americano Walter Tevis, lançado em 1983, o enredo acompanha a trajetória de Beth Harmon entre as décadas de 50 e 60. Órfã, ainda criança, ela praticamente obriga o zelador do abrigo onde vivia a lhe ensinar xadrez, depois de ver o tabuleiro dele e sentir o fascínio imediato que brotou desse encontro. Adotada, se livra do orfanato, mas não chega nem perto de uma experiência familiar equilibrada.
São apenas sete episódios e ninguém precisa entender os muitos meandros do jogo para acompanhar a história. Maratonei direto e minha familiaridade com o xadrez se situa abaixo de zero. A condução arrebatadora deve-se em grande parte ao talento da atriz Anya Taylor-Joy que, com apenas 24 anos, já cravou no currículo uma filmografia respeitável. Ela encarna a protagonista Beth Harmon jovem, personagem complexa a lidar com os transtornos pelo uso de medicamentos que lhe foram fartamente dados no orfanato – assim como às outras crianças internas. E, ao mesmo tempo, expressa em iguais doses a obstinação e a frieza necessárias ao projeto de ser brilhante numa seara até hoje dominada pelos homens.
Na vida real, como de hábito, o preconceito gera sofrimento, afasta e humilha. Nos anos 1970, o gênio americano Bobby Fischer – cuja inteligência aparentemente se restringiu ao tabuleiro – expressou a opinião segundo a qual mulheres seriam "fracas" e "burras" demais para o xadrez. E o russo Garry Kasparov, tido como um dos melhores da história do jogo, declarou em 1989: "O xadrez não combina com as mulheres”. Ele se retratou logo após e gosto de imaginar que talvez tenha evoluído existencialmente na qualidade de consultor de O Gambito da Rainha.
Para mim, que apenas buscava entretenimento, a série saiu melhor do que a encomenda, superou qualquer expectativa. E, repito, entendo tanto desse jogo quanto de sânscrito. É importante colocar, porém, a dimensão de seus efeitos no campo enxadrista. O que me supriu como diversão gerou uma movimentação inédita em torno dos tabuleiros, reais e virtuais, e alguns desabafos. Um exemplo é o da húngara Judit Polgar, que aos 15 anos se tornou a mais jovem “grande mestre internacional” – título dado aos que alcançam o ápice de rendimento no jogo –, quebrando um recorde que o lendário Bobby Fischer deteve durante três décadas. Judit chegou ao oitavo lugar no ranking dos melhores enxadristas do mundo, ela a única mulher entre os dez no topo. “O Gambito reproduz com muito realismo a linguagem corporal, os movimentos, mesmo as jogadas. No entanto, a série não tematiza suficientemente os aspectos sombrios da condição feminina no mundo do xadrez”, disse ela à rede alemã Deutsche Welle (DW).
A propósito, a história real das irmãs Polgar renderia um ótimo filme – ou série. A irmã mais velha de Judit, Susan, outro prodígio no xadrez profissional, avaliou numa entrevista à BBC que, em O Gambito da Rainha, os jogadores do sexo masculino parecem "quase bons demais para ser verdade". Disse ela: "Na minha carreira, quase não me lembro de um torneio em que coisas como assédio sexual, intimidação física e abuso verbal ou psicológico não aconteceram". Apesar dessas observações, ambas as feras Polgar – na verdade, um trio a incluir ainda a irmã Sofia, de menor expressão competitiva -, reconhecem o salto proporcionado pela série da Netflix, como um estímulo ao xadrez de maneira geral. E, especificamente, à maior presença feminina numa disputa em que gênero deveria ser irrelevante por completo.
Em tempo, o "Gambito da Rainha” nomeia uma abertura do xadrez na qual uma peça é sacrificada estrategicamente, de modo a render vantagem depois, se o adversário cair na armadilha. Mas, insisto, mesmo se você não entender nada sobre o jogo, como eu, a minissérie conta uma ótima história, executada com excelência, de consumo rápido e portanto propício a quem jamais embarcaria em dezenas de episódios.A segunda sugestão para os neófitos no multiverso das séries é Modern Love (Amor Moderno), disponível na Amazon Prime Vídeo. São apenas oito episódios e você pode assistir sete na ordem em que preferir, cada enredo é independente dos outros. A exceção fica por conta do oitavo, que deve ser o último mesmo, por uma razão que não posso explicar.
Com elencos diferentes a cada episódio e situações entre fofas e estapafúrdias, a série é uma adaptação televisiva da coluna Modern Love, lançada em 2004 pelo The New York Times e posteriormente também transmitida pela publicação via podcast. Em síntese, o jornal reproduzia experiências reais enviadas por leitores e, em 2013, disse já ter até então recebido algo em torno de 80 mil narrativas.
Desenvolvida para a TV pelo diretor, roteirista e músico irlandês John Carney, a série se mantém perfeitamente fiel ao propósito original – levar às pessoas histórias nas quais as relações humanas são o ingrediente básico, expressas em suas mais variadas formas, com muita sensibilidade e leveza. Só isso já justificaria a assistir, num contraponto ao período desafiador e sofrido em que quase todo o planeta mergulhou desde o início da pandemia de covid-19.
Um dos meus episódios favoritos conta a trajetória de um casal de homens em sua busca por adotar uma criança. Assim como nos demais enredos da série, o encaminhamento é evoluído, de cabeça aberta – o que me agrada profundamente, graças a Deus. Mas há um aditivo saboroso neste episódio: a interpretação magistral do ator Andrew Scott. Depois de acompanhá-lo como Jim Moriarty, arquivilão de Sherlock Holmes – Scott cumprindo o papel na adaptação da BBC, já enfaticamente recomendada aqui -, foi uma delícia constatar a diferença abissal entre esses dois personagens aos quais ele deu vida. O primeiro é um psicopata de carteirinha e a gente fica torcendo para o glorioso detetive inglês massacrá-lo sem misericórdia. O de Modern Love, ao contrário, encheu meus olhos de lágrimas, inspirou a vontade de o abraçar, solidária no campo da ficção e, na vida real, em reconhecimento à beleza que o ator imprime à história por sua marcante atuação.
Qualidade em todos os aspectos, justiça seja feita, é marca da série, que conta ainda com as atrizes Anne Hathaway e Catherine Keener (na foto abaixo), para citar apenas dois exemplos de um elenco estrelado, em meio ao qual os de menor fama igualmente se saem muito bem. Modern Love é um oásis de harmonia, alívio às agruras do cotidiano, oportunidade de ganhar fôlego pela imersão em um mundo onde tudo dá mais certo do que errado. Afinal, sonhar não paga imposto... e sair da realidade também não.
Por fim, deixo uma reflexão de Carl Jung, tido como “pai da psicologia analítica”, que bem se encaixa no espírito de ambas as sugestões: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”.
Para maratonar:
O gambito da rainha – uma temporada com sete episódios, completa na Netflix;
Amor moderno – uma temporada com oito episódios, completa na Amazon Prime Video.
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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