“De perto ninguém é normal” – um reforço à empatia
Monk e Atypical expõem, com leveza, desafios e prazeres das relações humanas Blogs e Colunas | Levando a Série 26/09/2020 12h00A citação do título, atribuída a Caetano Veloso – que dispensa apresentações –, ganha especiais contornos em duas séries de enredos bem diferentes. Em comum, porém, elas lançam um olhar sensível e empático sobre as dificuldades de adequação aos parâmetros socialmente estabelecidos. Não me refiro às pessoas que, por opção e motivos que cabem a elas, rompem com padrões de comportamento ditos “normais”. Estou falando de dois protagonistas cujas condições psicológicas fogem ao livre arbítrio e se enquadram em diagnósticos médicos/psiquiátricos.
A primeira é “Monk”, recomendada pela amiga e colega jornalista Ariadna Guimarães. Disponível na Amazon Prime Video, admito que pensei se tratar de uma história de detetive e eu tinha acabado de ver outra do gênero. Mas um belo dia resolvi conferir o primeiro episódio de Monk e de cara verifiquei enfocar muito além de investigação criminal. Danou-se, maratonei as oito temporadas, direto.
O detetive Adrian Monk brilhava na elucidação de homicídios, por sua capacidade de observar o que ninguém via além dele. Já apresentava um quadro de transtornos psicológicos, mas até então seus resultados superavam a questão. Foi assim até que a esposa de Monk, a bela Trudy, é assassinada (não é spoiler, já começa com esse fato). Privado de verdadeiro e recíproco amor, o detetive sofre um colapso nervoso. Suas fobias se agravam fortemente, ao ponto dele perder o distintivo do qual tanto se orgulhava, como agente do Departamento de Polícia de San Francisco, California. Um dos alicerces da série é justamente o empenho dele em recuperar sua farda. Periodicamente chamado a prestar consultoria ao antigo emprego, Monk se reafirma como um Sherlock Holmes contemporâneo, já que também dotado daquele talento ímpar para farejar pistas e mentirosos que consagrou o personagem de Sir Arthur Conan Doyle.
Embora Sherlock Holmes fosse um tanto excêntrico – de novo, para os padrões vigentes à época – nada em suas histórias se compara às variadas fobias de Monk, que chega a ter uma lista delas. A esse quadro se somam facetas múltiplas de Transtorno Obsessivo Compulsivo – o TOC –, e o detetive enfrenta revéses rotineiramente. Ao longo da série, ele conta com duas auxiliares essenciais à manutenção de sua funcionalidade, nas tarefas profissionais e nas mais corriqueiras – isso para quem não precisa lidar com tamanhos desafios. A enfermeira Sharona Fleming, interpretada por Bitty Schram, e a assistente Natalie Teeger, papel de Traylor Howard, atuam com igual competência e mantendo a ótima química com o chefe.
A série em tese reúne ingredientes de um drama – algumas cenas revelam o sofrimento de Monk ao ponto de encher meus olhos de lágrimas. Mas em muitas outras dei boas risadas, razão pela qual classificaria a narrativa como tragicômica, conceito a mesclar as duas vertentes do teatro grego – tragédia e comédia - nascidas mais de 500 anos antes de Cristo. A segunda vigorou e Tony Shalhoub, o intérprete do personagem Monk, ganhou três Emmy na categoria “melhor ator em série de comédia”, em 2003, 2005 e 2006, fora as indicações a este e outros prêmios, alguns dos quais ele também levou para casa. Mereceu. Tony Shalhoub é brilhante em sua atuação, decisiva para outorgar a Monk esse misto peculiar de drama e comédia que faz valer muito a pena assistir.
Proporcionar maior entendimento sobre transtornos dessa natureza – ao mesmo tempo nutrindo o maravilhoso sentimento da empatia – é também um dos méritos de Atypical (Não-típico, em tradução livre), produzida pela Netflix. Em termos gerais, a série acompanha a trajetória do jovem Sam Gardner, interpretado com impecável talento pelo ator britânico Keir Gilchrist. Entre outras coisas que aprendi: o ideal não é situar o personagem simplesmente como autista. O correto seria o citar como “no espectro autista”. Mas por quê? Para começar, por respeito e pela tal da empatia – escolhas existenciais que, no frigir dos ovos, se retroalimentam. Há uma infinidade de comportamentos associados ao transtorno, que se apresenta em variados graus. Não é “mi-mi-mi” ou frescura. Seria ótimo poupar essas pessoas e seus familiares de lidar com uma generalização que não se sustenta cientificamente e, pior, tende a nutrir preconceitos e/ou expectativas infundadas. Em uma cena emblemática, a mãe de Sam, Elsa – na pele da espetacular atriz Jennifer Jason Leigh –, questiona o entendimento errôneo de que pessoas no espectro autista têm necessariamente inteligência acima da média.
Embora o fio condutor da história seja a caminhada tortuosa de Sam Gardner – porém leve, e divertida em várias ocasiões –, o enredo permite ao elenco expressar seu talento, saindo da órbita do personagem central. O núcleo familiar, completado pelo pai, Doug (Michael Rapaport, também diretor e comediante) e pela irmã mais velha de Sam, Casey (Brigette Lundy-Paine), engrandece a narrativa. Promove uma sólida conexão de Atypical às delícias e agruras afins a qualquer relacionamento humano, sob um olhar evoluído, de amor, bondade, misericórdia, companheirismo e autoconhecimento – ainda que este obtido aos trancos e barrancos, quase sempre. Não é pouco. Vale destacar ainda o melhor amigo de Sam, Zahid, seu colega de trabalho em uma loja de eletroeletrônicos, papel que o ator Nik Dodani cumpre com singular carisma. Zahid se relaciona com Sam absolutamente à vontade, desprovido de qualquer reserva ou superproteção. É gente lidando com gente, e o afeto recíproco sendo a tônica, simples assim.
Termino com palavras do filósofo australiano Roman Krznaric: “Precisamos reconhecer que a empatia pode criar uma revolução - não daquelas à moda antiga, baseadas em novas leis ou instituições, mas algo mais fundamental: a revolução das relações humanas. Necessitamos hoje, com urgência”.
Para maratonar:
Monk – 8 temporadas completas, total de 125 episódios, disponível na Amazon Prime Vídeo
Atypical – 3 temporadas, total de 28 episódios, disponível na Netflix, que já anunciou “episódios finais em 2021”
Monica Pinto é Jornalista, editora do portal F5News, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e viciada em séries
E-mail: monica.pinto@f5news.com.br
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