As origens de uma lenda e de um herói em releituras que valem muito a pena | Levando a Série | F5 News - Sergipe Atualizado

As origens de uma lenda e de um herói em releituras que valem muito a pena
'Merlin' e 'Gotham' constroem ficção em cima de ficções e o resultado surpreende positivamente
Blogs e Colunas | Levando a Série 05/02/2021 15h55 - Atualizado em 06/02/2021 14h21

A lenda do rei Arthur é uma das mais notórias de todos os tempos, ao aliar senso de justiça à busca pela paz, inclusive e sobretudo baseada no respeito à fé de cada um – no caso entre os cristãos e a religião dominante entre os celtas, que cultuavam uma divindade feminina, a Grande Deusa, representante da mãe Terra, da fertilidade e das dádivas fornecidas de bom grado por uma natureza ainda poupada de tanta devastação. Como se sabe, o druida Merlin ajudou o jovem Arthur a erigir o reinado dele, em cujo decurso criou a “Távola Redonda”. Seu grupo de cavaleiros mais próximos nela se sentava e debatia as controvérsias, de modo a evitar disputas pelo fio da espada, dando preferência ao argumento – empenho com o qual me identifico plenamente. E, como a mesa era redonda, o rei Arthur não impunha nenhuma hierarquia de poder, todos pareciam iguais, ao menos em tese. 

Em se tratando de uma lenda, a gente pode se abstrair do contexto histórico em que os druidas tinham menos ascendência sobre os celtas do que as chamadas sacerdotisas, elo daquela sociedade com a Deusa Mãe reverenciada. Destaque-se que parte dessas mulheres findou queimada nas fogueiras da Inquisição, tidas como “bruxas” – na prática, o perfil de qualquer uma que conhecesse o poder curativo das ervas, ou que fizesse partos, para citar apenas dois exemplos de vítimas de tal barbárie. Não por acaso, portanto, um druida vicejou na lenda que sobreviveu à passagem de séculos. É da série que leva seu nome – Merlin – que trataremos aqui. 

Inicialmente transmitida pela BBC One, de 2008 a 2012, o programa da TV britânico ganhou fôlego mesmo ao chegar na Netflix – como acontece frequentemente. Merlin, ainda um rapaz, é enviado ao reino de Camelot por sua mãe, para ser aprendiz do médico da corte, Gaius, muito bem interpretado pelo ator escocês Richard Wilson. Só que esse mestre é também um mago, atividade paralela que desenvolve em segredo, já que podia lhe custar a vida. Ocorre que o pai do então príncipe Arthur, o rei Uther Pendragon (Anthony Head), tinha proibido qualquer uso de magia, vinte anos antes, no que chamou de “Grande Expurgo”.  Ele responsabilizava essa força mística pela morte de sua esposa, Igraine, no parto de Arthur, e quem fosse flagrado em transgressão era sumariamente executado. 

O bruxão Gaius rapidamente percebe que seu pupilo Merlin é naturalmente dotado de poderes mágicos e tenta refrear, sem sucesso, o ímpeto do rapaz em lançar mão deles. Merlin circunstancialmente vai se aproximando do então príncipe Arthur, jovem como ele – com a diferença do nobre ser grosseiro e arrogante – e acaba indo trabalhar como criado do futuro rei. A relação deriva para a amizade, com divertidas provocações recíprocas, o servo rotineiramente fazendo do amo uma pessoa de caráter mais adequado ao que ele estava destinado a ser. Merlin usa magia várias vezes para proteger o novo amigo, com toda discrição, atento ao risco de perder, literalmente, a própria cabeça. Por esse motivo, é impedido de colher os louros de suas façanhas. A química entre os dois é muito evidente, o que atribuo à competência dos atores nos papeis principais: o irlandês Colin Morgan, num Merlin inédito e pouco propenso a seguir regras, e o inglês Bradley James, como Arthur, o rapaz tolo cujo destino é se tornar um grande rei, justo e bem quisto por seu povo.

Completando o trio de protagonistas, está Morgana, que pela lenda passou à história como “fada”. Em Merlin, ela é interpretada pela atriz irlandesa Katie McGrath, provavelmente conhecida por muitos de outra série, “Supergirl”, onde fez o papel de Lena Luthor. A personagem Morgana é enigmática e poderosa; mais não posso dizer, sob risco de antecipar o enredo.

Por fim, é preciso citar o dragão Kilgharrah, único sobrevivente da espécie, preso pelo rei Uther em uma masmorra, por ocasião do “Grande Expurgo” da magia. Nada a ver com os filhos da incrível Daenerys Targaryen, de “Game of Thrones” – e mantenho o adjetivo “incrível” porque eu e meio mundo consideramos ridículo o final da série de maior sucesso da HBO. O dragão de Merlin não só fala, como vira uma espécie de consultor do jovem mago, que o visita secretamente em busca de respostas a suas inúmeras dúvidas. Além disso, quem dá voz ao sábio dragão é sir John Hurt, ator britânico de filmografia tão extensa quanto respeitável, personagem título de “O homem elefante”, papel pelo qual foi indicado ao Oscar. Como esse filmaço é de 1980, provavelmente muitos se lembrarão dele na pele do comerciante expert em varinhas mágicas na saga Harry Potter – sim, ele fez o Olivaras.

Merlin é entretenimento de qualidade, ao construir um enredo sedutor livremente inspirado em uma lenda. Não serve à parcela de estudantes inclinados a atalhos, pela sua assumida imprecisão, mas torço para que tenha nutrido a curiosidade sobre o chamado “ciclo arthuriano”, de modo a ampliar os arcabouços culturais de quem embarcou no aprofundamento. 

Farei um preâmbulo antes de entrar na segunda sugestão de hoje - Gotham. O texto introdutório a esta coluna, disponível aqui, cita a série televisiva do Batman, exibida nos anos 70 no Brasil – a rigor, um pastiche hiper escrachado do herói da DC Comics, cuja primeira aparição ocorreu em 1939, conforme o portal da própria DC. Essa série hilariante gerou um longa-metragem idem, com os mesmos atores – obrigada, Adam West –, lançado em 1966: “Batman, o filme”. Admito que não procurei explicação, mas o fato é que, apenas após 23 anos dessa comédia, o herói voltou a interessar a indústria cinematográfica. E muito: de 1989 a 1997, foram quatro superproduções sobre o homem-morcego. Vi todas e as apreciei, mas sem grande entusiasmo.

Até que, em 2005, o diretor Christopher Nolan, numa dobradinha perfeita com o ator Christian Bale, deu início à trilogia de filmes do “cavaleiro das trevas”.  Vieram mais dois, lançados em 2008 e 2012. Amei o primeiro. Amei o segundo, que teve nove indicações ao Oscar de 2009; sendo Heath Ledger vencedor na categoria “melhor ator coadjuvante”, prêmio póstumo, já que ele morreu em 2008, aos 28 anos de idade, poucos meses após o término das gravações do filme no qual foi consagrado como o melhor Coringa de todos os tempos. Até o inimigo visceral de Batman ganhar uma sensacional história para chamar de sua, que rendeu o Oscar de Melhor Ator ao brilhante Joaquin Phoenix. 

Só me ocupando dessa contextualização, me sentiria confortável em recomendar enfaticamente Gotham, série que, à semelhança de Merlin, aborda o “antes”, os caminhos percorridos pelo garoto Bruce Wayne, desde que testemunha o assassinato dos milionários pais até se transformar em um dos poucos heróis destituído de poderes inumanos. Semelhante a ele, há um dos meus preferidos, da rival Marvel Comics – o Homem de Ferro –, cuja jornada justiceira se vale da tecnologia avançadíssima que a fortuna herdada dos pais lhe viabiliza, além de, como o homem-morcego, reunir especiais inteligência e habilidades dedutivas. 

“Antes do Batman, havia Gotham”, apresenta a Netflix. A série capta à perfeição o “espírito” da cidade onde o “cavaleiro das trevas” viria a enfrentar o crime, tendo ainda que lidar com uma polícia essencialmente corrupta – com raras exceções – e uma classe política idem. Voltando ao preâmbulo, se eu não tivesse assistido à trilogia de filmes do diretor Christopher Nolan, aclamada por apresentar o Batman e seu entorno de forma mais fidedigna às HQs, jamais poderia perceber o quanto Gotham segue o mesmo rumo. E acho incrível, embora essa visão não seja unânime – nunca é –, culpa das licenças do roteiro, que a alguns desagradaram. 

Como a série aborda a origem do homem-morcego, o protagonista nela é o comissário James Gordon. Ele começa na história como detetive novato e vai descobrindo, em choque, que o submundo do crime em Gotham “molha a mão” de grande parte dos colegas policiais. No decorrer da gênese de Batman, a audiência acompanha também a de seus clássicos inimigos, entre os quais a Mulher-Gato, o Pinguim, o Charada (Cory Michael Smith) e o Coringa (Cameron Monaghan). 

Um artigo do "Rotten Tomatoes" tem por título “Como Gotham fez de um show do Batman sem o ‘Cruzado Encapuzado’ um dos melhores programas de quadrinhos da TV”. Exatamente isso, Batman mesmo só aparece no último episódio. Até então o que o público vê é Bruce Wayne se transformando nele. Muito interessante conferir, ao longo das cinco temporadas da série, o jovem ator David Mazouz passando de um garoto a um rapaz, como seu personagem. A interpretação dele é muito eficiente, mas o James Gordon de Ben McKenzie, a meu ver, entrega a cereja do bolo. Ele e os intérpretes de dois dos vilões: Robin Lord Taylor, como Oswald Cobblepot, o "Pinguim", e Camren Bicondova, como Selina Kyle, que viria se tornar a “Mulher-Gato”. Esse jovem talento, aliás, é quase um clone da atriz Michelle Pfeiffer, hoje uma senhora, que fez o papel da vilã em “Batman, o Retorno”, de 1992. 

O elenco é enorme, mas vale citar ainda o parceiro do então detetive James Gordon, Harvey Bullock, uma ótima atuação de Donal Logue. Acostumado a entrar nos “esquemas”, sob a percepção de que “isso é Gotham City”, a convivência com o colega razoavelmente honesto faz com que paulatinamente se torne um pouco mais ético, digamos assim. E o “razoavelmente honesto” de Jim Gordon se justifica, pois ocasionalmente ele se dá ao direito de fingir que não viu alguma falcatrua ou de apelar para a violência, em nome do que considera um bem maior. Na vida real, uma postura nada recomendável, a começar pela subjetividade dela. 

Criada pelo roteirista e produtor de TV Bruno Heller, que assina também “Roma”, da HBO, e “O Mentalista”, da CBS, Gotham honra a fama da cidade fictícia que talvez seja a mais conhecida do mundo.

Por fim, deixo à reflexão as palavras muito apropriadas às trajetórias que levam as pessoas a se tornarem quem elas são. Quem as disse foi Nelson Mandela, cujo legado grandioso dispensa comentários, mas foi a razão pela qual dei o nome dele a meu gato, na homenagem que me foi possível: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.

Boa semana!

Para maratonar: 

Merlin – cinco temporadas, cada uma com 13 episódios, total de 65, disponível na Netflix;

Gotham – quatro temporadas, total de 99 episódios, também disponível na Netflix.
 

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